27 de fevereiro de 2009

"Hoti!?"


Raul Viana
Itoculo


Hoti!? (dá licença!?). Foi com esta expressão usual e informal que iniciei o Curso de Cultura e Língua Macua no Anchilo-Nampula (Moçambique) no mês de Fevereiro. Tal como é preciso pedir licença para entrar na casa de alguém, também ao estudar a cultura de um povo, por uma questão de respeito e consideração, é necessário requerer esta mesma permissão.

De facto, entrar numa cultura, contactar e estudar aquilo que ela tem de genuíno, significa penetrar num espaço particular, restrito e único. Muito mais do que estudar os hábitos e costumes, trata-se de descobrir a alma de um povo, aquilo que ele tem de próprio e autêntico e lhe dá identidade. E tudo isso merece o máximo de estima e consideração.

Neste Curso inicial juntei-me aos 25 missionários recém-chegados: homens e mulheres, leigos e consagrados, casados e solteiros, católicos e protestantes, africanos e europeus, asiáticos e americanos, principiantes e experientes, ‘verdes e maduros’… Uma grande diversidade cultural disposta a encontrar e a descobrir uma mesma realidade: o povo Makuwa.

Aqui sinto que sou missionário no meio de um povo com a sua cultura e a sua história, o seu presente e os seus projectos de futuro, nos quais Deus também se revelou e continua a revelar. Isto faz-me encarar o estudo da cultura macua com uma atitude de fé, respeito e obrigação. Outros diriam que «a cultura não é algo para ver ou estudar como profanos, mas o campo onde Deus age através das pessoas». (P. Boucher).

Conhecer a história política e religiosa de Moçambique; iniciar o estudo da cultura do povo macua e perceber a sua linguagem simbólica; verificar e analisar a diversidade religiosa local, concretamente a presença cristã; abordar os ritos de iniciação masculina e feminina; fazer uma leitura do panorama sócio-político-económico de Moçambique... Em resumo, estes foram os assuntos que preencheram uma parte essencial do meu tempo aqui.

Enfim, é esta a minha primeira partilha missionária após ter deixado Portugal no dia 25 de Janeiro 2009. O bom desenrolar dos acontecimentos até à data fazem-me sentir confiante para a missão que me vai sendo atribuída. Cada vez que vou descobrindo mais onde me encontro, maiores são os desafios com que me deparo. Porém, não sou o único nem o primeiro nesta situação, e vejo que a Graça de Deus nunca deixa de me surpreender.

A todos os que possibilitaram a minha chegada a esta nova Missão, quero deixar aqui o meu sincero agradecimento e plena comunhão na oração e compromisso missionários. Que o Deus da Vida e da Missão nos fortaleça e nos ajude a viver intensamente este tempo de preparação pascal.

Um abraço amigo

7 de fevereiro de 2009

aprender com os mansos


Damasceno
Itoculo


O povo macua é um povo manso. Pode dizer-se.
Naturalmente também são capazes de se zangar e de limpar o sebo ao vizinho e, de vez em quando, a população pode atingir um certo estado de efervescência face a alguma situação de injustiça ou de calamidade. Mas, de um modo geral, são todos muito calminhos.
Esta propensão para a tranquilidade reflecte-se na forma como vivem e sentem a sua pertença a uma religião. O fanatismo e o extremismo religioso que grassam noutras sociedades, e no mundo global, passam completamente ao lado por aqui! Numa família é muito frequente o pai ser da religião tradicional, o filho ser cristão, a mulher ser muçulmana, a filha ser protestante… etc. Uma salada russa onde as religiões convivem pacificamente. Inclusive, todos participam nas festas e cerimónias da religião do vizinho com a maior das naturalidades.
Para a construção do nosso centro paroquial toda a areia foi extraída do terreno do xehe Amorani, que é uma espécie de bispo dos muçulmanos desta área de Itoculo. Na festa da inauguração do centro foi ele um dos principais convidados de honra, claro.
Ainda não há muito tempo – contam os missionários mais velhos – era possível, numa área de primeiríssima evangelização, as pessoas que queriam iniciar a sua caminhada catecumenal terem por catequista um muçulmano! Isto porque calhava ser este um dos poucos minimamente alfabetizados lá do sítio. Gentilmente se disponibilizava para auxiliar o padre até ao momento em que algum catecúmeno ou cristão fosse capaz de ler o catecismo e assumir o ministério.
No ano passado os crismas de uma certa região da paróquia realizaram-se precisamente no dia mundial das missões, em Outubro. Sendo festa grande não podiam faltar convidados de todos os quadrantes… lá estavam também os xehes. Foi com um certo espanto e graça que vi na fila para o ofertório um senhor de túnica branca e cófió na cabeça (chapéu típico dos muçulmanos). Aquele muçulmano, sem o saber muito bem, ia contribuir com a sua moedinha para a evangelização dos povos, já que era esse o destino do dinheiro recolhido no ofertório desse dia.
Se os fundamentalistas e intolerantes de outras bandas pudessem e quisessem aprender com a brandura e a docilidade do povo macua, este mundo seria um lugar bem melhor.

26 - A alegria completa

– Netia-Itoculo/2003-2004 «Um homem não pode tomar nada como próprio, se isso não lhe for dado do Céu. […] Pois esta é a minha alegria! ...