24 de maio de 2010



TRIVIALIDADES (II)
batuque e panelas

Raul Viana

Itoculo


Para além das capulanas e das bicicletas presentes por todo o lado, temos também os batuques e as panelas que marcam e acompanham a vida deste povo. Dois instrumentos preciosos para qualquer celebração tradicional, religiosa ou outra.

Festa sem batuque é como comida sem sal, ou mais ainda, é como dançar sem música. Simplesmente não é festa. As nossas comunidades cristãs são convidadas a silenciar os batuques durante o tempo quaresmal. Porém, passado esse tempo não mais param de tocar. Um pouco por todo o lado e em todo o tempo se houve o ritmo do batuque que assinala uma cerimónia religiosa ou tradicional.

Com o seu ritmo próprio, cada um dos três batuques acompanha e fortalece o andamento musical e o canto festivo. E tudo isso completa-se com a dança alegre e mexida. Quem já andou por estas bandas de África sabe bem como isto funciona. Todo o corpo vibra e todos vibram com o bater do batuque.

Num destes dias tivemos uma celebração dominical com recepção de Sacramentos, portanto motivo suficiente para uma festa efusiva. Vozes entusiasmadas, palmas bem ritmadas com o corpo embalado ao ritmo do batuque eram sinais de festa. No fim da celebração dois grupos de jovens defrontaram-se a ver qual era o melhor e mais forte no canto e na dança. O entusiasmo era tão grande que nem a chuva os fizeram parar. Os batuques começaram a rebentar pelas costuras, por causa da humidade, mas logo se procuram outros para os substituir. Quando se trata de festa nada nem ninguém faz parar…

Mas só a batucada não chega. É preciso a segunda parte que requer as panelas e seu conteúdo. Assim quando há festa os jovens carregam o batuque e as mulheres levam as panelas e os acessórios. Tudo parece estar bem programado pois tudo acontece de uma forma muito natural e sem grande azáfama. Assim, depois da dança vem a comida e a festa fica completa.

Na verdade quando se marca uma festa de um grupo, comunidade ou ministério logo se tem de pensar no que se segue à celebração: a comida. Não é que seja exigente nem se perca muito tempo com a refeição, pois isso faz-se em pouco tempo, mas estar numa festa e ir para casa com o estômago vazio, não é festa.

É na simplicidade deste povo que aprendemos também a ser simples. Uma realidade que não deixa de ter as marcas de quem ainda vive em busca e preocupado com os bens primeiros e essenciais da vida. Disso são prova evidente os grupos de mulheres que carregam a trouxa à cabeça, o filho às costas e outro pela mão, a caminho de uma qualquer cerimónia.

Enfim, no meio de tudo isto procuramos não ficar fora, mesmo sem muito ritmo para a dança, mexemos um pouco e entramos na festa. Após a celebração entramos também no ritmo do batuque e terminamos com a comida cuidadosamente preparada. Assim nos vamos integrando e interagindo com este povo, pois a Missão também é assim.

14 de maio de 2010

uma bênção


Damasceno
Itoculo


A irmã Alice tinha entregue os melhores anos da sua juventude à missão em Cabo Verde e no Senegal. Depois dispôs-se a servir como superiora da sua congregação em Portugal. E, quando o mundo civilizado ditava que a sua idade era a da reforma, aceitou o desafio de abrir uma nova frente missionária para as Irmãs do Espírito Santo: a missão de Itoculo, em Moçambique, no ano 2005. Juntamente com a irmã Carmo Barros foi pioneira de uma nova página da história da sua congregação.

Agora que chegou o momento de mais uma vez pegar na bagagem e partir, agradecemos… temos que louvar o Senhor. A obra que realizou é extraordinária, revela bem como a árvore estava enraizada em Jesus, porque só assim poderia ter dado tanto fruto. Juntamente com as suas irmãs orientou e fez avançar projectos que muito irão contribuir para o desenvolvimento deste povo: o centro nutricional e o lar feminino são apenas os exemplos que mais se destacam. A missão de Itoculo ganhou um outro colorido com a presença das irmãs. Nestes anos a irmã Alice garantiu que nem na casa dos padres faltassem flores e um pouco mais de arrumação estética. Os terrenos da missão foram bem aproveitados para plantação de árvores de fruto, sobretudo papaieiras, e para o incremento do cultivo hortícola que possibilitou uma melhoria significativa da nossa dieta alimentar. A nível pastoral quem mais beneficiou foram os casais. Com persistência a irmã foi reunindo homens e mulheres para os alimentar com a palavra de Deus. Iniciou-se um novo movimento que se espera venha a crescer e a ser gérmen de uma nova maneira de ser família entre os cristãos desta paróquia: é o movimento família de Nazaré.

A irmã Alice sabe que esta missão foi uma bênção para ela. Trouxe Cristo consigo para O anunciar aos irmãos do povo macua, mas também o encontrou já presente no rosto desta cultura, um rosto surpreendentemente belo. Foi aqui que ela viveu um dos momentos mais importantes da sua vida (cada momento da nossa vida é o mais importante, claro): recordamos por exemplo que foi aqui que recebeu o sacramento da unção dos doentes juntamente com outras pessoas de idade avançada, numa bonita celebração realizada no dia do doente este ano.

Na celebração de homenagem à irmã Alice, realizada há poucos dias com a comunidade cristã, a irmã Rosenir, actual superiora, quis acentuar a dimensão de envio. Não se tratou de uma despedida, mas de um envio. A irmã Alice é uma bênção, e queremos entregar/re-enviar essa bênção missionária a quem tiver a sorte de a receber.

9 de maio de 2010

trivialidades (I)
capulanas e bicicletas


Raul Viana
Itoculo


Cada povo tem a sua cultura, e cada cultura caracteriza o seu povo. Cada povo tem a sua arte, e cada génio embeleza o seu povo. Cada povo tem os seus hábitos, mas em cada tempo a moda impõe o seu estilo… Não sei se isto é moda, mas é uma realidade bem presente no seio deste povo: as capulanas e as bicicletas.

Dizem que as capulanas são o artigo de uso mais frequente em África. De facto, raramente encontramos uma mulher sem uma ou mais capulanas. Desde criança até longa idade todas elas usam este rectângulo de pano de várias cores e feitios. A sua diversidade é grande, e para tudo e mais alguma coisa se faz uma capulana evocando um acontecimento ou sendo a marca de referência de um grupo ou comunidade.

Isto mesmo foi feito na Paróquia de S. José de Itoculo. Nós temos uma capulana própria que as mulheres usam nos dias de festa e nos primeiros domingos de cada mês. Com esse mesmo tecido se fizeram camisas para os homens a fim de ficar o casal completo e bem composto! Podemos dizer que essa é a marca referencial, a nossa bandeira. Onde quer que vamos como grupo colorimos o ambiente!

Na verdade a capulana é usada como forma de saia comprida. É usada para tapar a cabeça do sol. É usada para trazer o filho às costas. É usada como toalha ou lençol. É usada como saco ou bolsa com os produtos da machamba/campo. É usada nas capelas e cerimónias. É usada para enterrar os mortos. Enfim, é usada de mil e uma maneiras.

A par deste elemento muito comum entre os africanos, estão também as bicicletas. Tal como as capulanas, há muita diversidade e modelos de bicicletas. Mas acima de tudo, são usadas numa grande variedade de funções.

Servem para transporte pessoal. Servem para levar os doentes ao hospital. Servem para os animadores visitarem as comunidades. Servem para os alunos irem à escola. Servem para dar um passeio ou fazer um treino. Servem carregar os produtos da machamba/campo. Servem para transporte de mercadorias. Servem para inúmeras funções.

Assim, nestes caminhos irregulares (cheios buracos) com troços arenosos que dificultam a marcha, são muitas as avarias e furos que elas sofrem. Porém, o que mais interpela é a carga que elas carregam. Encontramos muitas vezes bicicletas carregando dois ou mais troncos de madeira, três ou quatro sacos de carvão, galinhas penduradas, cabritos sentados, porcos deitados, etc e tal… parecendo autênticos camiões de mercadorias. Isto sem contar as vezes que também parecem um autocarro, onde vai a família completa, ou as vezes em que são transportes de aluguer para viagens um pouco mais distantes.


Enfim, duas realidades que interpelam quem está nestas terras e que fazem parte do quotidiano deste povo. Quanto à capulana, foi-me oferecida uma delas em forma de camisa que uso no dia da festa da Paróquia e da festa das famílias. Quanto à bicicleta, o uso é muito pouco, embora já me serviu de transporte para ir celebrar numa das comunidades aqui perto. Portanto, não estando ainda totalmente inculturado no esquema local, vou tentando aproximar ao comum das pessoas e seus costumes.

26 - A alegria completa

– Netia-Itoculo/2003-2004 «Um homem não pode tomar nada como próprio, se isso não lhe for dado do Céu. […] Pois esta é a minha alegria! ...