27 de fevereiro de 2013

tão singular e especial!



Joana Cruz

Itoculo

Sentei-me para escrever um texto que é interrompido… interrompido por um conjunto de vozes infantis que pedem licença “Hoti! Hoti!” e repetem, repetem até eu sorrir para os olhos brilhantes que me cumprimentam e a partir deste momento o texto deixa de ter importância, os trabalhos que estavam previstos para esta tarde serão feitos em mais um serão que não estava planeado; porque esta tarde vou ficar sentada a falar com as cinco crianças que vieram dizer-me “Olá”. Vamos ver um ou vários livros, vou ler uma história, ou então esperar que um dos meus alunos da 7ª classe chegue e será ele a ler… Talvez façamos alguns jogos…


E a tarde passa, está menos calor, o grupo cresceu e as idades são alargadas, então os mais novos decidem sair, e os que ficamos vamos passear. Hoje vamos no bairro. Cumprimentamos as pessoas; digo duas ou três palavras em macua e rimos juntos mesmo sem entendermos. Os miúdos traduzem algumas coisas, outros momentos são os próprios a falar a língua materna.



Há momentos que vamos calados, aproveito para olhar melhor cada coisa que já me é tão familiar - as casas, as árvores, os cabritos, as galinhas, outros momentos falamos, de qualquer coisa que aconteceu, de alguma diferença que achamos que pode ser falado,  e continuamos… cumprimento as pessoas, algumas oferecem-me mandioca, castanha de caju, amendoim… vou aceitando! E atrás de nós vem um grupo de outras crianças que nos segue com a máxima atenção. Se também estivermos atentos vamos perceber que me imitam e até falam como eu, uns sons que eles afirmam ser a minha língua, porque afinal têm direito de falar português, é tão giro! E continuamos; passamos no mercado, aí tenho de cumprimentar muitas pessoas, ouvir daqui e dali vozes a pedir para eu dar refresco, biscoito… e rio ou então sorrio e não paramos, continuamos a caminhar até chegar perto de casa, eu fico e cada um vai preparar-se porque às 17h30m temos eucaristia.


E cada eucaristia é especial! Chego um bocadinho antes, sou a responsável pelas leituras, ver se os leitores previamente escolhidos não esqueceram que é dia deles, e tenho de confirmar se a leitura foi preparada. Cumprimento as pessoas e vou sabendo novidades. E chega a hora de entrarmos na capela; toda a celebração é festa, os cânticos, as palmas… a alegria de ser cristão!


No final da celebração voltamos a cumprimentar-nos e conversamos um pouco, alguns miúdos fazem comigo o curto caminho até casa. E vamos a rir de qualquer coisa, todos juntos, com um céu incrivelmente escuro, onde o brilho das estrelas tem uma luz ainda mais genuína. É tão especial este céu, há noites que é tão claro que parece que não anoitece, outras, como esta, é tão escuro que me perco a contemplar a infinitude das estrelas.


Um céu genuíno retrata um pouco o povo que brilha no escuro de uma vida árdua. Um povo que dia a dia luta para resolver os obstáculos que vão surgindo; um povo que não se preocupa com o amanhã distante, que não pensa num futuro e por isso vive mais intensamente o presente e talvez por isso sofra de problemas que certamente uma gestão diferente o faria não passar, mas esse mesmo povo me cativou por motivos que não consigo verbalizar, um povo que me acolhe a cada dia, que me faz esquecer que não sou de cá, um povo que me mostra um novo estar, um modo de vida diferente e que pouco a pouco fui gostando!



Um povo que faz este ano ser diferente, ser tão especial! Não ter palavras para falar daquilo que vivo a cada dia, a cada momento!


E olho novamente este céu; e as estrelas brilham de modo tão especial… e em cada uma vejo os olhos brilhantes das crianças que me visitam, os rostos brilhantes das crianças para quem eu dirijo um sorriso ou o flash da máquina, as crianças que correm cada vez que o carro passa e gritam “tá tá” (a forma mais bela que conheço de dizer adeus)… e a cada estrela, a cada pedacinho de céu vejo um bocadinho deste Itoculo tão singular e especial!

26 - A alegria completa

– Netia-Itoculo/2003-2004 «Um homem não pode tomar nada como próprio, se isso não lhe for dado do Céu. […] Pois esta é a minha alegria! ...