10 de setembro de 2019

Grupo NAKUMI em Itoculo


Em jeito de partilha fica aqui o testemunho da Catarina, do Grupo NAKUMI que esteve em Itoculo de 1 a 21 de Julho de 2019, vindos da Paróquia de Santo André de Vitorino dos Piães, Diocese de Viana do Castelo (Portugal).

Salama.
Boa tarde.
Tudo bem?
Era assim que começavam todas as conversas. Mas as pessoas diziam mesmo se estavam bem ou não, se lhes doía um braço, um dente, mesmo que tivessem tido malária há um mês contavam e diziam que já estavam melhores e a partir daí não faltavam temas de conversa.
Foram 3 semanas que pareceram 3 dias e ao mesmo tempo a nível de experiência de vida parece que se passaram anos.
            Fui preparada para encontrar pobreza, sabia que ia encontrar fome, mas é muito mais do que isso. Falta tudo. Falta água. Falta comida. Falta escolas. Falta hospitais. Há jovens que nunca foram à escola como é o caso do Dinis de 18 anos que vive na aldeia da minha família de acolhimento. Perguntei-lhe porquê que não vai à escola, tinha um tradutor ao lado porque quem não vai à escola geralmente só fala macua, e ele disse-me que a escola mais perto ficava a 2 horas de distância. Imaginem 4 horas a pé todos os dias para ir à escola. Como poderia ir quando mal tem o que comer? O que era suposto eu dizer em resposta aquilo? Perguntei muitas vezes ao meu tio, o Pe. Raul, o que se diz nessas alturas e ele só me dizia “vais dizer o quê?”.
            Há crianças que têm de viver com problemas de saúde que seriam logo corrigidos se tivessem nascido aqui, como é o caso do Ricardo de 5 anos que mal consegue andar por ter os pés tortos, aqui poderia ser corrigido tão facilmente.
            Para além destes dois casos conhecemos muitos mais que cada um de nós traz consigo no coração.
            Como o Jacinto, uma criança da escolinha com quem estávamos todos os dias, tem 3 anos e já passou por tanto. Passou por várias casas, por várias famílias. Viu coisas que ninguém deveria ver e mesmo assim é a criança mais meiga e com o sorriso mais bonito que já vi. No caminho para a escolinha pegava sempre em alguma coisa para nos oferecer, a Irmã Adelaide que é quem cuida da escolinha diz que ele quando gosta de alguém traz nem que seja uma pedrinha para lhe dar.
            Falta tudo.
            Mentira. Não falta tudo. Não falta o mais importante. Há alegria como nunca antes tinha visto. Há a bondade de partilhar tudo o que têm. O mais emocionante nesta viagem foi o que me deram, pessoas que não têm quase nada deram-me tudo. Dormiram uma noite fora de casa ao frio para que eu ficasse confortável no quarto deles. Deram-me a comida que tinham mesmo não tendo para eles. E no fim agradeceram-nos pela visita, tão felizes.
            Acreditem, não é preciso muito para ser feliz. Não é mesmo.
            Apesar de não faltar tudo ainda é preciso muito.
            Eu não fazia ideia da importância do trabalho do Pe. Raul lá em Itoculo, é graças a ele e a outros espiritanos que lá estão que muitos jovens conseguem ir à escola porque ficam nos lares, crianças que têm onde brincar e comer por existir a escolinha. Bebés que não morrem à fome porque há o centro de nutrição para lhes dar comida. Eles lá não são só padres e freiras, são tudo, são mesmo tudo para muitas pessoas.


            Mas fazem isto tudo porque têm ajudas de pessoas de cá, padrinhos dos lares que todos os anos dão uma contribuição, padrinhos de crianças que ajudam a pagar os estudos, padrinhos do centro de nutrição que permite matar a fome a estas crianças.
            As coisas lá são muito mais baratas o que faz com que uma pequena ajuda nossa consiga mudar muitas vidas.
            Este ano, a partir de Novembro, irá haver muita fome devido aos ciclones que destruíram as plantações. Muitos irão aparecer no centro de nutrição e acreditem que não há nada que custe mais do que ver uma criança a chorar de fome.
            Antes de ir eu dizia à minha mãe “toda a gente diz que quando voltar serei uma pessoa diferente, que aquilo muda as pessoas” e eu não acreditava muito, como é que apenas 3 semanas poderiam fazer isso? Mas a verdade é que mudou e espero ter conseguido transmitir um pouquinho da missão de Itoculo a todos vocês, que nos ajudaram a ajudar.
Muito obrigada.
Koxukuro.

CATARINA FELGUEIRAS

HISTÓRIA DE VIDA


Já lá vão 25 anos de Profissão Religiosa. Parece que foi ontem… O tempo passa rápido e, mais um pouco, também eu passo pelo tempo. Houve tempo para tudo. Sinto que fiz de tudo e mais alguma coisa. Guardo na memória muitas histórias e situações.


Onde nasci e cresci tenho grata recordação. O ambiente familiar continua saudável e acolhedor. O encontro e a festa nunca faltaram. Tal como nunca faltou o apoio e a compreensão. Liberdade e acção, coragem e amparo, confiança e firmeza sempre estiveram à mesa desse encontro. Agradeço os pais que me geraram e cuidaram, os irmãos que me acolheram, todos os familiares e amigos que me fortaleceram.

A caminhada é pessoal, e «o sonho comanda a vida». Cedo entrei no seminário, e a descoberta foi acontecendo. A idade avançava e os ideais esclareciam-se. A hora aproximava-se e a decisão foi tomada. A opção aconteceu e o sonho tornou-se realidade. Recordo esse dia. Lembro as palavras proferidas. Sinto de novo o mesmo compromisso. Sou missionário, sou consagrado. Louvado seja Deus.

Uma nova família estava constituída, maior, mais alargada. Novos horizontes se abriram à medida que se avançava no tempo e no compromisso. Primeiro foi o estudo, a oração, os pequenos trabalhos locais. Depois veio a partida, o diferente e o desconhecido, a aventura, o arriscar e desenrascar... Coisas que a juventude carrega sem medo.

Aquilo que era temporário fez-se permanente. O serviço foi a primeira ordem recebida. Parecia ensaio mas já era realidade. Não havia tempo a perder. «Faça-se». Fui então ordenado para servir e guiar: «crê o que lês, ensina o que crês e vive o que ensinas». Novo milénio começava, nova etapa acontecia, uma missão, um missionário. Eu mesmo, padre missionário espiritano.

«Vá para fora cá dentro», foi a primeira aposta. O despertar vocacional e animação juvenil marcaram esse tempo. Crianças e adolescentes, jovens e adultos, todos entraram no meu novo mundo feito de encontros e acampamentos, retiros e jornadas, peregrinações e caminhadas. A missão era visitar, acompanhar, orientar ou, simplesmente, estar. O que resultou? Desconheço. Deus o sabe. Apenas um sentimento de dever cumprido, ainda que pudesse ter sido melhor.

Jovem com os jovens. Sonho e aventura. Animação com vida e entrega. Dias preenchidos, noites prolongadas, tempo insuficiente para tanta vida despontada. Coordenação e concentração a norte, sem esquecer outras regiões, em vista da união juvenil sem fronteiras. Pontes e abraços, iniciativas e sucessos, fracassos e decepções, alegrias e esperanças… realidades de um mundo jovem feito de jovens. Terminava assim esta primeira etapa neste «ad intra» lusitano.

Abrir novos horizontes, voar até outras paragens, conhecer novas realidades, uma missão a começar. O povo macua, a cultura e as tradições, a língua e a linguagem, o clima e todo o meio ambiente a descobrir. O desconhecido foi-se apresentando, o inseguro deu lugar à segurança, a novidade ganhou confiança, o encontro acabou com as incertezas, e uma nova vida começou a ser vivida.

A missão tem agora o rosto de crianças sorridentes e simples, jovens animados mas olhando ainda um futuro incerto, homens e mulheres serenos e carregados de histórias. A pobreza, muitas vezes a confundir-se com a miséria, incomoda e desafia. Ficar parado não resolve, é preciso seguir e agir juntos. Sem esperar grandes mudanças, apenas empenhado em pequenas transformações cada dia. Trata-se de dar pequenos passos para fazer grandes caminhadas.

Muitos caminhos percorridos. Muitos deles numa verdadeira aventura. O destino era um encontro, uma celebração, uma sentada. Conversas espontâneas, informações locais, situações à espera de solução, orientação e decisões conjuntas, formação pastoral, tudo em vista de uma vivência humana e cristã comprometida. Depois o regresso, o cansaço, o restabelecer das forças para começar novo dia.

Resumindo, foram dias a capacitar lideranças, abrir novas possibilidades, implementar projectos de desenvolvimento, até dar boleia e ajuda humanitária… ou simplesmente cuidar do ser humano. Mas também restabelecer laços, reconciliar desavenças, pacificar corações, absolver sacramentalmente, construindo a Igreja de Jesus. No meio de tudo isso a palavra do Evangelho e a busca da comunhão divina.

Na verdade, já passaram 25 anos com pessoas e experiências marcantes. Não sei o que virá à frente. Mais fácil não será. Mas como até agora, também estou confiante, não estarei sozinho nem isolado, a missão é sempre plural e comunitária. Essa é a minha missão também. Que Deus me abençoe e me ajude a ser fiel nesta caminhada, para cada dia começar sempre de novo, aberto às surpresas de cada momento.

Um obrigado sincero a todos. E, juntos, façamos um brinde à vida.

26 - A alegria completa

– Netia-Itoculo/2003-2004 «Um homem não pode tomar nada como próprio, se isso não lhe for dado do Céu. […] Pois esta é a minha alegria! ...