27 de dezembro de 2017

Uma Carta de amor

Meu querido Itoculo,

O momento que eu mais temia chegou e tal como eu temia não estou preparada para ele, chegou a hora de me despedir de ti, de te deixar.

Mas antes de ir quero-te agradecer por tudo quanto me ensinaste, sempre com a tua imensa paciência. 
E algumas coisas que me ensinaste são para levar comigo para a vida.
Agora sei que quando as coisas não correm como planeado devemos lidar com isso com naturalidade, se hoje não deu, amanhã dará, no entanto não te habitues demasiado a isso porque pode ser perigoso, podes deixar de querer lutar e trabalhar por aquilo a que tens direito, tens de ser tu próprio a combater a tua pobreza, pois não vai cair ninguém do céu para o fazer por ti, tu mereces melhor só tens de ter consciência disso, tu mereces ter acesso a escolas competentes, a centros de saúde que se importem contigo, tu mereces ter acesso a água potável, a formação, mereces não ter de passar fome só porque num ano não choveu o suficiente, mereces um governo que ame o seu povo.

Ensinaste-me ainda que apesar dos meus problemas ou das minhas frustações devo viver a vida de forma alegre, apesar de não estar tudo bem, está tudo normal e isso é mais que suficiente para uma boa batucada.

Ensinaste-me que quando estamos no mato e muitas vezes não há rede no telemóvel, passamos a dar valor ao que é importante, damos valor à companhia de uma amigo ou de um familiar a uma boa conversa a um bom convívio.

Ensinaste-me que nem sempre precisamos de falar para comunicar, as tuas mamãs Macuas, que muitas vezes não conseguiram estudar porque tu ainda és um "bocadinho" machista, ou porque tiveram que casar cedo, foram umas excelentes amigas e professoras, sempre nas nossas conversas desajeitadas elas me demonstraram amor, preocupação, companheirismo, foram muitas vezes aquele carinho de mãe que precisava.

Ensinaste-me que devemos ser gratos por aquilo que alcançamos na vida, devo agradecer ter acesso aquilo que chamo condições básicas à vida.

E mesmo na recta final, quando eu achava que já me tinhas ensinado tudo, mostraste-me que posso planear tudo, posso ter tudo bem definido, mas tudo que está planeado pode não acontecer, pode sair tudo furado e a única coisa que não aconteceu foram os furos planeados, mas já sei já sei, amanhã havemos de lá chegar.

Mas a lição mais importante foi a de dar valor às pessoas, à família, à vida, se alguém que conhecemos está doente, devemos-nos unir para estar com essa pessoa, se existe um motivo de alegria na família mata-se uma galinha, um porco, faz-se um bom caril e fazemos uma festa, afinal a vida é demasiado curta e incerta para vivermos sempre tristes e zangados com ela.

Espero também te ter ensinado alguma coisa, pois todo o trabalho que fiz aqui foi com o maior amor, entreguei-me completamente a ti, e em quase quase todos os dias dei o melhor de mim.
Sei que em breve já vais ter outra, trata-a tão bem como me tratas-te a mim, sei que ela será muito feliz, e sairá daqui com um coração muito maior e muito mais aconchegado.

Vou sentir muito a tua falta, do teu calor, da tua fruta, do teu Verde selvagem, dos teus embodeiros, do teu castanho no tempo seco, do teu tá tá vô, mas vou sentir mais falta da tua alegria, tens sempre um sorriso para apresentar, tens sempre um Ihali para oferecer, tens sempre alguém a gritar o meu nome no meio do bairro, provavelmente uma criança feliz.

Espero não ter de trabalhar para uma Economia que mata, espero ter diferentes sinfonias nas minhas tardes, espero ter sempre direito ao meu Bom Dia, espero que comecemos a trabalhar para o bem da nossa casa comum, espero ter sempre o prazer do trabalho voluntário na minha vida.

Eu quero muito voltar para casa, mas não te quero deixar, e só tu e eu sabemos o que esta separação vai custar, mas vou fazer de tudo para voltar a ser feliz, assim como tu me ensinaste.

Foi um ano muito feliz,
Mpáka nihíku nikína,
Com todo o meu amor,
Helena











7 comentários:

Lu disse...

Que lindo testemunho de vida. Emocionante. Caiu algo no meu olho... beijo.

Raul Viana disse...

Quando a medida do amor é amar sem medida, acontece isso. Obrigado e tudo de bom. Parabéns.

Eli disse...

As tuas palavras sentem se! Passam nos uma sensação de partilha, quase que estivemos lá e sentimos e cheirámos e vivemos juntamente contigo. Que lindo testemunho. Beijinho e um bem haja à tua vida.

Bruno Almeida disse...

Obrigado Helena pelas tuas partilhas e reflexões :-)

Lisete Reis disse...

Ó.. que lindo, emocionou-me! Saudades de Itoculo! :)

Anónimo disse...

TÁ TÁ VO

Tony Neves disse...

fantástico,Helena. Que bom viver um ano assim e dizer, no fim, o que dizes. A Missão, claramente, está só a começar. abraço e até breve. Quero ouvir esta história de viva voz!

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