17 de novembro de 2018


Desabafo  de madrugada, na magia de uma visão!














Tenho medo de acordar:
e repetir os passos de ontem,
e ver tudo igual,
e não ver mudanças,
e ver os meus sonhos a ser engolidos pelas sombras da noite!
e não ter o chão debaixo dos pés,
Ver para alguém e não ver ninguém,
Ter a certeza de que não estou certo nas minhas certezas!
 e não respirar a vida,
Ver-me arder nas brasas da ilusão,
e ser cinza da verdade!

Quero acordar:
num mundo onde a irmandade é o talismã,
para agradecer o ontem e acolher o hoje
num mundo em que há um céu,
onde todos beneficiamos do mesmo sol e da mesma sombra!
num mundo onde o amor é a dinâmica das relações humanas.

Tenho que acordar:
Para remendar a verdade,
dizer ao meu vizinho: está na hora de caminhar;
enfrentar o dia e os  meus medos,
quebrar as correntes,
beijar o dia, abraçar a minha sombra,
e seguir o meu destino!
Parar de sonhar, acolher a minha realidade,
Abraçar a minha cruz e pôr-me a caminho,
Confiar em quem me pôs aqui, na chamada à vida;
Atar as correias das sandálias, e caminhar sem medo de quedas!

“Hoje temo viver, mas mesmo assim arrisco viver porque ninguém pode viver a minha própria vida por mim; se assim fosse, não era eu! Viver só por facticidade não quero. A minha esperança fracassa, sinto uma escassez de forças atordoando os meus sonhos, quando olho para o meu país e a sua política. Nasci num país que, segundo a constituição, o estado é democrático. Democracia? Ainda a ignoro, nunca a vi, os “boss” nunca a testemunharam. Como todas as crianças, queria apoderar-me da minha liberdade, crescer, ganhar asas, voar nos sonhos, mas hoje rastejo na terra. Sem impulso não consigo; o medo dos “caçadores dos sonhos”, aspetos negativos da minha cultura, parte as minhas asas. Sou mais um pássaro que sonha voar; sou mais uma criança entre tantas que sonha e se interroga a si mesma: até quando vou sair do berço da pobreza? Não há ninguém aqui nas redondezas capaz de ver que os meus pés anseiam por caminhos de uma infância digna, porque na falta deles estou condenado a este berço. Licença, dotados de inteligência, permitam-me dar umas dicas, mesmo não tendo diplomas como vocês: “criança é flor que murcha na falta de água”. Isto de dizer nos grandes palcos que, uma maneira manhosa e muito engenhosa de cativar os inocentes, «criança é flor que nunca murcha», não passa de um conjunto de palavras anémicas, marcadas pela carência da autenticidade e da verdade na minha realidade, e não passam de uma falácia. Quer entender melhor o que estou desabafar contigo? Mude de ângulo, deixe o miradouro e percorra, faz um contacto direto com o que tanto miravas de um extremo para o outro.
Sabe, nos meus tempos livres, o chão, os dedos, os paus são os meus materiais que uso para fazer uma simulação de um verdadeiro ATL propiamente dito. Falo-te da minha escola; a minha escola está aos pedaços; os paus, ruídos pelos vermes, já não aguentam; as chuvas quando vêm levam a metade das paredes, que na verdade são feitas de lamas, e na falta de apoio fica assim mesmo, uma “barraca-escola”; o professor aparece quando lhe apetecer; não há carteira e já estamos cansados de sentar nos troncos, outrora no chão para assistir aquela preciosa aula quando o professor aparece na escola; os meus livros não tardam muito a estragar, porque é no chão que os pouso… Façam algo de jeito, Senhores! Um certo dia passei na praça para a deposição da coroa de flores em homenagem aos antigos combatentes da pátria, ouvi discursos que ainda cultivam ódio, raiva, rancor no coração daqueles que ainda não despertaram do sono; discurso de massacre ao bode expiatório, colonos. Já passaram 43 anos, mas ainda nos sentimos no cativeiro. Afinal o que aconteceu há 43 anos atrás? Foi realmente o êxodo da minha nação? Um irmão mais velho disse-me que ainda somos colonizados, isto abolou todos os meus fundamentos. Façam algo de jeito, Senhores!


Tenho sede, Senhores! Quero água limpa, Senhores! Dizem nos slogans por aí “A água é vida”. Sim, mas hoje entre viver ou morrer de sede, sou obrigado a beber daquela água que, lentamente, à medida que sacia a minha sede, vai matando a minha vida. Na minha realidade, pouco se sabe de uma tal “água potável”, porque é de onde lavamos as roupas, tomamos banho, é que tiramos água para beber e confecionar o alimentos. Isto te parece normal? Façam algo de jeito, Senhores.
Antes de entrar na sala de aula cantamos orgulhosamente “pátria gloriosa”, mas onde está a glória da minha pátria? É isto que chamamos pátria gloriosa? Eu e os meus amigos ouvimos dizer que no nosso país somos ricos em recursos naturais, ouro, carvão mineral, pedras preciosas, petróleo, gás, etc. Mas estamos tristes sabendo da existência deles e dos seus usos constantemente e nós ainda continuamos a viver nesta pobreza crónica e a ter de suportar todos os dias condições menos humanas. Senhores, nós não estamos a beneficiar do que é nosso, porquê?
Sabemos que nas vossas mesas há lautos banquetes e os restos vão para o lixo, que também se bebe a meia e deita-se fora, enquanto aqui em casa há dias em que não vemos nada na mesa e, para que saibam, nem mesa temos; o nosso copo anseia por algo diferente daquela água suja. Não temos bola nem campo em condições e, quando queremos jogar, como qualquer um que vive em condições normais, improvisamos uma bola de balão (preservativo). Façam algo de jeito, Senhores!
Aqui na zona temos um grupo de amigos missionários, na verdade são verdadeiros amigos, preocupam-se connosco e com o nosso bem-estar, e dentro daquilo que são as suas capacidades ajudam-nos imensos. Atenção, não nos dão ofertas ou prémios, dão-nos pistas para lá chegar. A eles, os nossos agradecimentos de coração; o mesmo dirigimos à ONGD SOLSEF que, em cooperação com Cssp, nos trouxeram o oásis, no meio deste mato, este pedacinho de terra, Itoculo, desconhecido pelos Senhores da casa. Graças a eles, hoje somos crianças e jovens de esperança, de sonhos! À mana Helena e à mana Cristina sejam dirigidas as nossas honras, pois ensinam-nos a ler, escrever, contam-nos histórias, mostram nos filmes, ensinam-nos a sonhar, mostram-nos o mundo que qualquer criança como nós deseja alcançar. Elas fazem-nos sentir meninos e meninas! Na conversa com eles, falam-nos das grandes dificuldades que têm, devido aos sistemas burocráticos do país, para ter o visto de residência, assim como as taxas que devem pagar para tal efeito; isto é-nos incompreensível, sendo que a intenção deles é simplesmente vir ajudar-nos sem receber nada em troca! Façam algo de jeito, Senhores! O primeiro passo para a solidariedade é destruir as fronteiras. Estamos exultantes de alegria na esperança de que algo de jeito seja feito um dia, mesmo não sendo nós a usufruir dele, mas que seja feito, Senhores!"
Hoje é uma necessidade ser voz dos que não a têm! Calar perante as injustiças e abusos dos direitos humanos significa que somos cultivadores dos mesmos. Dar a vida pelo outro, é manifestar a vontade de ser vitorioso, querer a maior de todas as vitórias registada na história. Vemo-la na cruz. Desabafo da madrugada chama a atenção às “políticas esquizofrénicas” e “politicas abstratas” a que estamos habituados. Desabafo na madrugada é um “post-it” de não esquecer-se dos “primeiros”, segundo grau de necessidade. É também um grito em sinal de vida e convida a todos a um olhar mais abrangente. É um toque nas portas do coração, é um “ainda estou aqui, não se esqueçam de mim”, que requer uma lembrança especial, lembrança essa que nos leva às periferias, proporcionando um contacto face a face com os que realmente precisam de ti. É um apelo à promoção do bem-comum, da justiça e paz, e dos direitos humanos que nos são inalienáveis.
Pobreza? Facilmente ouvimos expressões como esta: sou pobre, mas feliz! Parece fácil, mas não é; porque consiste na aceitação do que somos, que é um desafio enorme hoje, das circunstâncias que nos envolvem, também apoiado na esperança de que o amanhã tudo vai melhorar. O pobre feliz é aquele que clama (sal. 34). Hoje fala-se muito da pobreza e no seu combate. De facto, este fenómeno chamado pobreza, como tal, é uma ameaça à vida e torna-se um perigo quando penetra nas estruturas humanas. Mas, humanamente falando, somos todos pobres independentemente das investiduras, títulos, estatutos, castas, bens etc. somos pobres por essência (Gn 2,7). Ao ouvir falar da pobreza, a tendência é de pensar já numa pobreza materializada, e arranca de nós a interjeição: «oh, coitadinhos; Não têm roupas, sapatos, dinheiro, casa, carro, etc»; face a isto, movidos pelos sentimentos de pena, leva-nos a fazer aquele tipo de “caridadezinha”, dando aquela “avassaladora oferta de consumo” (Papa Francisco) que não passa de um serviço social; isto é naufragar os pobres na pobreza. Esquece-se de uma dita “pobreza de ideias!” Esta é perigosa, pois encerra as presas num ciclo de impotência abismático. Na sua presença, vemos e ouvimos, face a qualquer situação, algo parecido: “ah, somos pobres, não podemos fazer isso ou aquilo”. Isto acontece quando o vírus da pobreza contamina o próprio cérebro, eis o perigo da pobreza. Combater a pobreza é mostrar aos pobres e fazê-los sentir que a pobreza não é o fim, pelo contrário, é o começo de tudo (…).
Gilberto Borges, Itoculo aos 30.10.18, in pro-missão IV.

15 de novembro de 2018

Qualificativos


Os adjetivos qualificam os nomes de pessoas e objectos. Têm a função de atribuir uma qualidade a determinado nome e por isso podem engrandecer o desfavorecer essa pessoa ou objecto. Assim, em agosto deste ano acolhemos a Ponte JSF e num dos textos finais apareceram dois adjetivos desqualificativos: mísero e obsoleto.

O primeiro está referido a um «mísero órgão». Trata-se de um instrumento musical pequeno, cor preta, electrónico, com quatro escalas musicais… próprio para quem está a aprender. Isto é, um órgão musical. Foi caracterizado de mísero. Não sabemos o que está por detrás desta classificação, embora saibamos que para uma catedral europeia não passa disso mesmo. Mas aqui não temos outro. Ele é muito bom, ouve-se muito bem no espaço para o qual foi adquirido, e, bem tocado, ajuda bastante na animação litúrgica.


O segundo adjetivo refere-se a seis aparelhos, «alguns obsoletos», dos quais quatro são portáteis e dois de mesa. Funcionam com o Windows 7. Uns foram adquiridos e outros oferecidos. Agradecemos aos doadores. Mas também foram classificados de obsoletos. No entanto, para quem está a dar os primeiros passos no acesso às novas tecnologias, são máquinas que respondem perfeitamente às necessidades locais. Não caíram em desuso nem são arcaicos, apesar de haver muita e grande novidade nesta área das novas tecnologias, e de muito rapidamente serem ultrapassados por novos modelos no mercado digital.

Quer para um caso, ou para outro, acima classificados de mísero e obsoleto, importa dizer também que estamos abertos a acolher novas ofertas. Não ambicionamos acumular nem fazer negócio, mas queremos contribuir para gerar novos conhecimentos, facilitar o acesso às novas tecnologias, possibilitar novas aptidões, favorecer um primeiro contacto a quem não tem outra possibilidade. É pequeno e são poucos, é verdade. Podiam ser maiores e melhores, perfeitamente de acordo. Mas não interessa desconsiderar nem desprestigiar.

É sempre bom ter um olhar crítico, mas também que seja realista. Queremos continuar a acolher pessoas que nos visitam e partilhem connosco um pouco da vida missionária, com experiências de curta e/ou longa duração. Também queremos que valorizem e contextualizem o que encontram. Na vida não faltam ajustes e desajustes, diminuições e exageros, reacções e contradições… mas os adjectivos qualificam e dão atributos. Se não valorizamos, pelos menos não diminuímos o que já existe de esforço e dedicação.

Enfim, com aquilo que temos e usamos na missão, tanto na área do saber e como do lazer, da animação como da formação, são instrumentos e aparelhos normais, não são o «último grito» do mercado, nem de longe. Também não queremos nem estamos interessados em tal rigor e qualidade de produto. Ainda somos principiantes no uso desses instrumentos, e o nosso poder de compra é bastante limitado. Mas a nossa vontade é grande.

26 - A alegria completa

– Netia-Itoculo/2003-2004 «Um homem não pode tomar nada como próprio, se isso não lhe for dado do Céu. […] Pois esta é a minha alegria! ...