Pedro Fernandes
Itoculo
Os últimos tempos, para mim, têm sido de despedida: olaxerya. Deixo Itoculo e Moçambique ao fim de quase treze anos de permanência, depois de tanta coisa acontecida e de tantas experiências que me foi dado fazer. Neste sinuoso rio que é a nossa vida, o momento actual é, assim, de dizer adeus.
Todas as situações da vida são significativas –todas sinalizam Deus e os outros- e esta situação das despedidas também é assim. Não é das mais agradáveis, mas recorda algo de essencial, absolutamente necessário para que a vida não perca sabor: nada é nosso. A tendência humana mais natural é apropriarmo-nos da nossa vida, dos nossos projectos, do nosso trabalho, do nosso pequeno universo de relações, de sucessos, assenhorearmo-nos do nosso chão, de todo esse conjunto de “posses” que nos faz sentir seguros e no nosso lugar. Despedir-se recorda algo de fundamental na vida cristã, que lhe confere todo o seu dinamismo e esperança: estamos a caminho, não temos aqui –qualquer que seja esse “aqui”- morada permanente, precisamos de ter as malas feitas e alicerçar as nossas seguranças em algo de mais fundo que num capital pessoal a que chamamos “nosso” e radicarmos no único absoluto, o único que permanece e que dá sentido a tudo: Jesus Cristo, Deus. Dessa maneira, mesmo as coisas mais simples e aparentemente insignificantes ganham uma áurea de eternidade e tornam-se fonte de alegria, não porque são nossas, mas porque, pelo contrário, nos ajudam a ser mais livres, mais nós mesmos, mais de Deus.
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Na minha terra, antes da partida de um missionário ou missionária, é frequente organizarem-se “missas de envio”, cerimónias em que a comunidade eclesial se compromete com o missionário, dizendo-lhe que ele não vai só, mas é enviado e leva a Igreja toda consigo. Hoje, em Mavule, percebi que aqui é exactamente assim, a minha “missa de despedida” foi, talvez mais, uma “missa de envio”. Serena, discreta, sem nenhuma pretensão de enviar para longe o nosso padre, para ele lá ir como salvador ou solucionador, mas nessa mansa e fraterna atitude de partilha, de deixar partir guardando, no entanto, o único essencial: a comunhão. E a comunhão está para além da presença física, ela ultrapassa tempos e espaços porque bebe o seu ser no próprio ser de Deus. A comunhão é eterna.
Por isso, despedir-se é, afinal, transfigurar a separação, dar-lhe sentido e transformar as partidas e chegadas numa permanente festa da missão. Estamos sempre a partir, estamos sempre a chegar; estamos sempre a acolher, estamos sempre a despedir: gente, experiências, situações... tudo vai e tudo vem. E na vida tudo permanece naquilo que em nós transformou e nos impulsionou a transformar à nossa volta.
Há um mês, um pouco antes da partida para férias do meu irmão Damasceno, organizou-se, no centro da paróquia, um festa de alcance paroquial, para a minha despedida e para a apresentação oficial do novo pároco, o P. Damasceno. Também aí a mesma intuição: a missão é a partilha de uma peregrinação, de uma caminhada em Cristo, para Cristo e com os irmãos, que não nos pode deixar quietos, mesmo quando nem mudamos de lugar. Nessa ocasião foram várias as manifestações de amizade e solidariedade, todas a recordar-nos esse essencial que permanece: o amor.
Peregrinar é uma questão de amor, partir ou chegar só faz sentido se for vivido como caminho feito em comunhão: sair com os outros, para os outros e pelos outros. E isso é que é a alma da missão: partir por amor, chegar por amor... A única força capaz de realmente transformar alguém, ou alguma coisa, é o amor. Só o amor desinstala de si, só o amor nos faz sair de nós mesmos, só o amor dá sentido e fecundidade às perdas e separações. Nisso consiste o amor. E é por isso que, como nos diz Paulo, só o amor permanece... Só no amor podemos acreditar, só nele podemos esperar, só o amor tem futuro, só o amor salva: esse único e irrepetível amor de Cristo na Cruz.
As despedidas são um dos grandes ícones da grande despedida, que é também a grande chegada: a morte. A peregrinação da nossa vida é feita de mortes e ressurreições, e é, por isso mesmo, a experiência que nos é dado fazer da morte e Ressurreição de Jesus, na qual participamos pela fé e na esperança. Esta experiência pascal é, enfim, a alma mesma da nossa vida: nada se perde, de nada nos separamos definitivamente, tudo se transfigura, como é transfigurada a Cruz em glória e a morte em ressurreição. Mas não há ressurreição sem morte, como não há, neste mundo, amor sem dor. Quem quer amar, deve caminhar e sentir a dureza do caminho.
A missão é, afinal, uma questão de amor... Deixo Itoculo com essa convicção e essa esperança. E é por isso que, olhando o futuro, só o amor e a confiança em Cristo podem dar força e sentido a novos investimentos. A missão é uma questão de amor...
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