8 de outubro de 2012

MOÇAMBIQUE
20 anos de paz

Raul Viana

Itoculo

Cada ano em Moçambique o dia 4 de Outubro é sobejamente festejado para celebrar o tempo da paz, o fim da luta armada nacional. Este ano celebramos o vigésimo aniversário (1992-2012) deste grande dia de bênção para todo o povo moçambicano.
 
Na nossa Paróquia de S. José de Itoculo, Diocese de Nacala, começamos por recordar uma das vítimas mortais antes de chegar esse grandioso dia. Trata-se do Irmão Alfredo Fiorino, missionário comboniano, médico de profissão, que no dia 24 de Agosto de 1992 foi atacado e morto por guerrilheiros quando regressava a casa. Foi a última vítima missionária da luta armada nacional moçambicana.
 
Alguns anos antes, nesse mesmo lugar, uma outra irmã comboniana, Teresa, também foi vítima de uma emboscada semelhante, juntamente com 22 pessoas locais. Pouco tempo depois, os cristãos dessa zona pastoral, chamada Mweravale, para recordar o sangue derramado dos missionários mortos durante a guerra civil, construíram aí uma capela, que hoje serve como centro de culto nessa mesma zona pastoral.

 
Dia nacional da paz

Os 20 anos de paz são expressão de um tempo bonito e próspero. É um acontecimento que está marcado na memória de todo o povo, visto que enorme foi o sofrimento que a guerra provocou no seio das famílias e em muitas aldeias. Ainda hoje não deixa de ser impressionante a maneira como as nossas comunidades cristãs vibram quando entoam o canto da paz na celebração dominical. 
 
Mas celebrar 20 anos de paz é também o momento para contemplar e avaliar as mudanças produzidas em todo o país e em todos os sectores da vida social. Desde o campo político e económico, passando pelo social e cultural, culminando no plano religioso e missionário, muitas transformações se operaram como expressão de uma paz tão ansiada.
 
É verdade que nem tudo foi conseguido como seria desejado. Muitos desafios permanecem e têm de ser enfrentados para que a paz seja de verdade um tempo próspero para todos. A situação de pobreza extrema em que muitas pessoas se encontram são a expressão mais forte desta urgência desta paz efetiva.
 

 
Paz e desenvolvimento
 
Apesar de vivermos num país democrático com eleições livres, não deixa de ser questionável a confusão entre partido no poder e respetivo ato governamental. Igualmente, uma oposição política alternativa é essencial em todo este processo. Mesmo assim, se notamos que há muito caminho a percorrer neste campo político, também é verdade que muito já foi conseguido, ainda que a «Primavera árabe» pareça algo de temível.

Um olhar atento da realidade atual mostra também que Moçambique vive uma situação social e política aparentemente estável. Já o mesmo não se pode dizer no plano económico. O país está invadido por multinacionais em busca do carvão de Tete, do gás natural de Inhambane, das areias pesadas de Moma (Nampula), do petróleo na bacia do Rovuma (Caba Delgado), de pedras semipreciosas, de madeira exótica, etc… Tudo isto, porém, contrasta com o 184º lugar do ranking mundial de desenvolvimento em que o país se encontra.

Sendo que a verdadeira paz envolve tudo e todos, facilmente percebemos o número excessivo de excluídos. A pobreza extrema ainda é uma realidade bem presente nestas terras, mesmo que o Governo tenha como objetivo erradicá-la até 2015, de acordo com os Objetivos do Milénio. Porém, não deixa de ser também um sinal evidente de uma paz ainda em construção.

Segundo Mia Couto, um dos maiores escritores moçambicanos, e também uma das vozes críticas atuais da sociedade, «a maior pobreza de Moçambique hoje é não conseguir produzir um discurso inovador. Este discurso sobre a pobreza é um discurso pobre, repetitivo, feito de estereótipos e de frases populistas. Por isso não atinge a realidade, não convence as pessoas, não vai ao fundo do problema». Ou seja, parece que é preciso encontrar um novo estilo e método para consolidar a paz para que seja verdadeiro desenvolvimento.

Por sua vez, urge «fazer acontecer» o desenvolvimento, o que implica necessariamente uma ação e atitude participativa. Como afirmaram os Bispos moçambicanos é importante uma «nova catequese realista, mais ativa e participativa». Ou seja, os cristãos como parte integrante deste processo terão de ser verdadeiramente «sal da terra» e «luz do mundo» (Mt 5,13-14).

 
A paz que desafia

O papel da Igreja em todo o processo para a obtenção da paz foi determinante e peculiar. Esta é uma bandeira conquistada que trouxe prestígio e credibilidade, um crescimento e estabilidade da prática religiosa, inclusive a possibilidade de criar instituições próprias nos vários campos da educação, da saúde e na formação dos seus agentes de pastoral.

Porém, se durante o tempo da luta armada os cristãos perseguidos manifestaram grande coragem e firmeza de fé, já o mesmo parece que não se verifica neste atual tempo de paz. Na verdade, a voz profética da Igreja e dos Missionários, segundo o parecer de alguns membros mais críticos, parece ter resfriado um pouco.

Logo que a paz chegou, a Igreja Católica empenhou-se em recuperar os seus bens perdidos do tempo marxista. De imediato se dedicou a construir e reconstruir seminários e casas de formação, a voltar-se mais sobre si mesma. Neste sentido, a liberdade religiosa parece ter sacrificado o espírito de denúncia profética e o verdadeiro sentido de ser e fazer missão. Por sua vez, este silêncio da Igreja consentiu o desabrochar da corrupção exagerada aos mais altos níveis, uma corrida fácil e generalizada ao poderio e riqueza individual, entre outras coisas que se verificam na atualidade.

Deste modo, grandes desafios se apresentam a toda a Igreja em Moçambique: presença crítica onde proliferam as multinacionais, participação no meio do povo e ao serviço dos mais pobres, empenho contra todas as formas de pobreza, luta por um futuro sustentável, promoção da reconciliação, justiça e paz, capacitação dos agentes pastorais, entre outros elementos de referência.

 
Espiritanos em tempo de paz

Com a instauração da paz nacional muitas Congregações Religiosas e Missionárias entraram e se instalaram em Moçambique. Por exemplo, na nossa Diocese de Nacala no início da década de 90 existiam 5 Institutos Religiosos, hoje ultrapassam as duas dezenas.  O mesmo se verifica a nível nacional onde já atingimos o total de 116 Institutos de Vida Consagrada. Por sua vez, Moçambique é também o país onde se encontra o maior número de voluntários missionários portugueses.

Nós, Missionários Espiritanos, somos parte integrante deste tempo novo. Iniciamos a nossa presença missionária em Moçambique a 29 de Novembro de 1996, em pleno tempo de construção da paz moçambicana. Apanhamos o germinar e desenvolver da árvore frondosa que não cessa de crescer neste jardim cultural de Moçambique.

O nosso compromisso missionário onde nos encontramos pretende ser um sinal vivo e eficaz da construção da verdadeira paz que encontra em Jesus o modelo mais sublime. Não temos outro projeto a não ser o das Bem-aventuranças, «dos pacíficos que serão chamados filhos de Deus» (Mt 5,9), onde os mais pobres são escutados e onde tentamos colmatar a dificuldade pela falta de obreiros do Evangelho.

A exigência e o rigor da missão que assumimos com este povo são grandes e desafiantes. Dificuldades não faltam, como também é grande a confiança e o apoio recebido. Por isso, resta expressar um sentimento de imensa gratidão por tantos sinais de verdadeira comunhão missionária e continuar a acreditar que a paz gera transformação.

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