MOÇAMBIQUE
20 anos de paz
Raul Viana
Itoculo
Cada ano em Moçambique o dia 4 de Outubro é sobejamente festejado
para celebrar o tempo da paz, o fim da luta armada nacional. Este ano
celebramos o vigésimo aniversário (1992-2012) deste grande dia de bênção para
todo o povo moçambicano.
Na nossa Paróquia de S. José de Itoculo, Diocese de
Nacala, começamos por recordar uma das vítimas mortais antes de chegar esse
grandioso dia. Trata-se do Irmão Alfredo Fiorino, missionário comboniano,
médico de profissão, que no dia 24 de Agosto de 1992 foi atacado e morto por
guerrilheiros quando regressava a casa. Foi a última vítima missionária da luta
armada nacional moçambicana.
Alguns anos antes, nesse mesmo lugar, uma outra irmã
comboniana, Teresa, também foi vítima de uma emboscada semelhante, juntamente com
22 pessoas locais. Pouco tempo depois, os cristãos dessa zona pastoral, chamada
Mweravale, para recordar o sangue derramado dos missionários mortos durante a
guerra civil, construíram aí uma capela, que hoje serve como centro de culto
nessa mesma zona pastoral.
Dia nacional da
paz
Os 20 anos de paz são expressão de um tempo bonito e
próspero. É um acontecimento que está marcado na memória de todo o povo, visto que
enorme foi o sofrimento que a guerra provocou no seio das famílias e em muitas aldeias.
Ainda hoje não deixa de ser impressionante a maneira como as nossas comunidades
cristãs vibram quando entoam o canto da paz na celebração dominical.
Mas celebrar 20 anos de paz é também o momento para contemplar
e avaliar as mudanças produzidas em todo o país e em todos os sectores da vida
social. Desde o campo político e económico, passando pelo social e cultural,
culminando no plano religioso e missionário, muitas transformações se operaram
como expressão de uma paz tão ansiada.
É verdade que nem tudo foi conseguido como seria
desejado. Muitos desafios permanecem e têm de ser enfrentados para que a paz
seja de verdade um tempo próspero para todos. A situação de pobreza extrema em
que muitas pessoas se encontram são a expressão mais forte desta urgência desta
paz efetiva.
Paz e
desenvolvimento
Apesar de vivermos num país democrático com eleições
livres, não deixa de ser questionável a confusão entre partido no poder e respetivo
ato governamental. Igualmente, uma oposição política alternativa é essencial em
todo este processo. Mesmo assim, se notamos que há muito caminho a percorrer
neste campo político, também é verdade que muito já foi conseguido, ainda que a
«Primavera árabe» pareça algo de temível.
Um olhar atento da realidade atual mostra também que Moçambique
vive uma situação social e política aparentemente estável. Já o mesmo não se
pode dizer no plano económico. O país está invadido por multinacionais em busca
do carvão de Tete, do gás natural de Inhambane, das areias pesadas de Moma (Nampula),
do petróleo na bacia do Rovuma (Caba Delgado), de pedras semipreciosas, de
madeira exótica, etc… Tudo isto, porém, contrasta com o 184º lugar do ranking
mundial de desenvolvimento em que o país se encontra.
Sendo que a verdadeira paz envolve tudo e todos,
facilmente percebemos o número excessivo de excluídos. A pobreza extrema ainda
é uma realidade bem presente nestas terras, mesmo que o Governo tenha como
objetivo erradicá-la até 2015, de acordo com os Objetivos do Milénio. Porém, não deixa de ser também um sinal evidente
de uma paz ainda em construção.
Segundo Mia Couto, um dos maiores escritores
moçambicanos, e também uma das vozes críticas atuais da sociedade, «a maior pobreza
de Moçambique hoje é não conseguir produzir um discurso inovador. Este discurso
sobre a pobreza é um discurso pobre, repetitivo, feito de estereótipos e de
frases populistas. Por isso não atinge a realidade, não convence as pessoas,
não vai ao fundo do problema». Ou seja, parece que é preciso encontrar um novo
estilo e método para consolidar a paz para que seja verdadeiro desenvolvimento.
Por sua vez, urge «fazer acontecer» o desenvolvimento, o
que implica necessariamente uma ação e atitude participativa. Como afirmaram os
Bispos moçambicanos é importante uma «nova catequese realista, mais ativa e
participativa». Ou seja, os cristãos como parte integrante deste processo terão
de ser verdadeiramente «sal da terra» e «luz do mundo» (Mt 5,13-14).
A paz que desafia
O papel da Igreja em todo o processo para a obtenção da
paz foi determinante e peculiar. Esta é uma bandeira conquistada que trouxe
prestígio e credibilidade, um crescimento e estabilidade da prática religiosa, inclusive
a possibilidade de criar instituições próprias nos vários campos da educação,
da saúde e na formação dos seus agentes de pastoral.
Porém, se durante o tempo da luta armada os cristãos
perseguidos manifestaram grande coragem e firmeza de fé, já o mesmo parece que não
se verifica neste atual tempo de paz. Na verdade, a voz profética da Igreja e
dos Missionários, segundo o parecer de alguns membros mais críticos, parece ter
resfriado um pouco.
Logo que a paz chegou, a Igreja Católica empenhou-se em recuperar
os seus bens perdidos do tempo marxista. De imediato se dedicou a construir e
reconstruir seminários e casas de formação, a voltar-se mais sobre si mesma. Neste
sentido, a liberdade religiosa parece ter sacrificado o espírito de denúncia
profética e o verdadeiro sentido de ser e fazer missão. Por sua vez, este
silêncio da Igreja consentiu o desabrochar da corrupção exagerada aos mais
altos níveis, uma corrida fácil e generalizada ao poderio e riqueza individual,
entre outras coisas que se verificam na atualidade.
Deste modo, grandes desafios se
apresentam a toda a Igreja em Moçambique: presença crítica onde proliferam as
multinacionais, participação no meio do povo e ao serviço dos mais pobres,
empenho contra todas as formas de pobreza, luta por um futuro sustentável, promoção
da reconciliação, justiça e paz, capacitação dos agentes pastorais, entre
outros elementos de referência.
Espiritanos em
tempo de paz
Com a instauração da paz nacional muitas Congregações
Religiosas e Missionárias entraram e se instalaram em Moçambique. Por exemplo,
na nossa Diocese de Nacala no início da década de 90 existiam 5 Institutos
Religiosos, hoje ultrapassam as duas dezenas. O mesmo se verifica a nível nacional onde já
atingimos o total de 116 Institutos de Vida Consagrada. Por sua vez, Moçambique
é também o país onde se encontra o maior número de voluntários missionários
portugueses.
Nós, Missionários Espiritanos, somos parte integrante
deste tempo novo. Iniciamos a nossa presença missionária em Moçambique a 29 de
Novembro de 1996, em pleno tempo de construção da paz moçambicana. Apanhamos o
germinar e desenvolver da árvore frondosa que não cessa de crescer neste jardim
cultural de Moçambique.
O nosso compromisso missionário onde nos encontramos
pretende ser um sinal vivo e eficaz da construção da verdadeira paz que encontra
em Jesus o modelo mais sublime. Não temos outro projeto a não ser o das
Bem-aventuranças, «dos pacíficos que serão chamados filhos de Deus» (Mt 5,9),
onde os mais pobres são escutados e onde tentamos colmatar a dificuldade pela
falta de obreiros do Evangelho.
A exigência e o rigor da missão que assumimos com este
povo são grandes e desafiantes. Dificuldades não faltam, como também é grande a
confiança e o apoio recebido. Por isso, resta expressar um sentimento de imensa
gratidão por tantos sinais de verdadeira comunhão missionária e continuar a
acreditar que a paz gera transformação.