31 de dezembro de 2010

uma faceta da missão

Damasceno dos Reis
Itoculo


Noutras partes do mundo – em Portugal, por exemplo – os assuntos das conversas entre as pessoas no momento mesmo em que se encontram podem variar muito. Dependendo dos acontecimentos recentes, do dia em que se encontram, das pessoas que encontram, etc., qualquer tema pode vir ao de cima. O clima: “Bom dia, hoje está um frio de rachar”; o desemprego: “Boa noite, então o seu filho já conseguiu aquele emprego?”; o desporto: “Olá. E o jogo ontem à noite? 4-0 à Espanha foi uma maravilha…”; a política: “Bah! Os políticos são todos iguais…” e assim por diante. Em Nampula, entre o povo macua, o grande assunto que acompanha a saudação ou a conversa imediata após a saudação inicial é sempre o mesmo: as doenças. Cada um apresenta ao amigo o rol exaustivo das doenças que o afectam a si e à sua família no momento presente. Desde a malária, omnipresente, até à simples tosse, passando pela diarreia, pela dor de coluna ou por uma simples unha encravada, tudo é contabilizado e exibido aos demais. Nas reuniões de formação e programação que regularmente se organizam na nossa missão, já sabemos, a primeira meia hora é sempre para os responsáveis das diferentes comunidades cristãs desfiarem o rosário das suas maleitas. Isto revela como a doença é algo que aflige profundamente este povo. Este lamento quase permanente é talvez a solução possível para quem se habituou a não ter por perto nem postos de saúde, nem medicamentos, nem nada. É uma lamúria que traz algum conforto pelo facto mesmo de ser partilhada com os outros…

Para além destas doenças, digamos, mais convencionais, as pessoas queixam-se também com alguma frequência de ataques de espíritos malignos, de perturbações devidas a forças ocultas e de outros problemas de ordem mais sobrenatural. É um fenómeno que se verifica em todas as sociedades e em todos os tempos. Mas aqui em África talvez isso se faça sentir com mais intensidade. Em muitos casos o que está na origem destes “minepa sonanara” (maus espíritos em macua) não passa de pura superstição e é preciso ajudar as pessoas a entender isso. Leva tempo, e as pessoas sentem-se angustiadas ao deparar-se com coisas que não conseguem entender. Por isso uma parte do trabalho dos missionários desenvolve-se na área da saúde e particularmente na formação sobre as verdadeiras causas e mecanismos das doenças. Mas também é verdade que muitas vezes há situações de fragilidade, de desarranjos psíquicos, etc. que têm a ver com uma autêntica influência demoníaca. O missionário, e mais especificamente o ministro de Deus tem que estar preparado para isso. Deve ter o Evangelho como referência, e Jesus como modelo e força que liberta do mal.

No início deste ano apresentou-se na missão uma senhora que sofria de“majini” (doença de maus espíritos). Como é habitual nestes casos tentamos encaminhar a pessoa para o hospital, procuramos certificar-nos de que não se tratava de alguma malária mal curada, por exemplo. Mas neste caso a senhora já tinha seguido esse percurso, e, esgotadas todas as possibilidades, não melhorou nada. O que lhe estava então a acontecer? Segundo o que ela descreveu, ela era visitada por multidões de espíritos que a queriam obrigar a abandonar a fé católica. Ameaçavam-na e provocavam-lhe torturas de várias espécies para fazer com que renegasse a sua fé e regressasse às práticas pagãs.Tinha já dificuldade em participar com a comunidade na celebração do domingo. Fizemos então uma pequena oração, simples. Leu-se a palavrade Deus e o padre impôs-lhe as mãos. Demos-lhe água benta e instruções para rezar em casa sem desistir. Durante bastante tempo a senhora veio à missão para várias sessões de oração de libertação. Por vezes, enquanto se rezava, reagia com tremores e com uma respiração ofegante,mas aos poucos foi serenando. Decidiu também deixar uma situação de pecado em que vivia, confessou-se e passou a comungar regularmente. Foi dando sinais de novo equilíbrio e alegria de viver. Neste mês de Novembro em que se organizam em toda a paróquia os novos grupos de catequese para o próximo ano 2011, ela apresentou-se com uma lista de crianças a quem irá dar catequese. Ficámos contentes e demos graças a Deus que é fonte da verdadeira saúde em Jesus Cristo seu Filho.

Continuação de um feliz Natal e Ano 2011 cheio do amor de Deus.

20 de dezembro de 2010

uma visita fraterna


Raul Viana
Itoculo



De 8 a 18 de Dezembro tivemos a visita fraterna do Superior Geral – Jean-Paul Hoch – e do Conselheiro Geral – John Kingston. Foi um momento de graça e de comunhão neste tempo que antecede o Natal.

A visita iniciou-se na comunidade espiritana de Nampula, passando depois para Itoculo através de um encontro inter-comunitário na Cabaceira, seguindo para a Beira e posteriormente em Inyazónia, onde se concluiu. Apesar de ser uma visita breve, não deixou de ser intensa e interessante. Assim mesmo estamos agradecidos e confortados na missão espiritana, unidos «num só coração e numa só alma».



Ainda que limitada pela brevidade do tempo, houve momentos para uma inserção comunitária e pastoral, de convivo fraterno e amigo, de partilha franca e conselheira, de celebração simples e profunda.

Para nós, comunidade de Itoculo, foi um feliz culminar das visitas recebidas (do exterior) neste ano de 2010. Com a inauguração do Lar Feminino das Irmãs Espiritanas tivemos a visita do P. Tony Neves e do Faustino Monteiro, que foi antecedida por uma outra visita do leigo Rui Rodrigues. Depois foi a visita do P. Zé Manel - Provincial de Portugal – e do P. Joaquim Pároco da Penajoia. Tudo isto a par da chegada da voluntária missionária Ernestina Falcão, professora de Biologia que permanecerá connosco até Agosto de 2011; da partida em Novembro do estagiário Elson Lopes (cabo-verdiano) e da chegada em Dezembro de outro estagiário espiritano Vicent Akpabi (ganês) ainda às voltas com o português.

Com todas estas chegadas e partidas vivemos assim a missão e a todos estamos agradecidos. Para aqueles que gostariam de ter cá chegado e não puderam, reforçamos a nossa comunhão e sentido missionário. Para aqueles que por cá passaram e aqui viveram um abraço de saudade e esperamos o regresso.

A todos um SANTO e FELIZ NATAL.

4 de dezembro de 2010

levas a tua água?



Zé Manel
Portugal

Depois de 24 horas de viagem e de termos sido acolhidos em Nampula pelo P. Damasceno, a primeira coisa que eu e o P. Joaquim Dionísio, pároco da Penajóia, fizemos na missão de Itoculo – Moçambique, foi participar na Eucaristia do fim da tarde onde, para além dos membros da equipa missionária (4 irmãs espiritanas: Joyce - Nigéria; Rosenir - Brasil; Adelaide - Cabo Verde e Augusta - Portugal; uma leiga voluntária: Ernestina Falcão, um estagiário espiritano: Elson e dois espiritanos: P Raul e P. Damasceno) havia um bom grupo de fiéis, grande maioria homens, que estavam em formação enquanto responsáveis do ministério de justiça e paz nas suas comunidades. Uma das últimas coisas que fizemos naquela missão foi a participação numa hora de adoração, para a equipa missionária, ao final da tarde de domingo, e um jantar convívio de despedida que se lhe seguiu. Pelo meio, naquela missão onde passámos pouco mais de 5 dias, houve muita coisa que só se compreende verdadeiramente na perspectiva do enquadramento de fé que referi.

E daquilo que vivi, partilho as seguintes reflexões:
- 1. A Missão nasce em Deus e volta a Deus. Sem Ele o missionário desfalece e o povo não chega a vislumbrar a Esperança.
- 2. Acreditando na misericórdia e bondade de Deus custa, por vezes, a compreender que haja tanta miséria e tanto sofrimento, sobretudo de crianças. Perante o sofrimento do outro, o missionário, a missionária, está pregado à cruz, como Jesus. Sofre…
- 3. Toda e qualquer sociedade onde o bem comum não está acima do bem egoisticamente pessoal, então muitos serão privados daquilo a que têm direito, por direito inalienável de ser pessoa humana. O missionário, pela sua entrega gratuita, questiona, interpela, sofre e eleva.
- 4. Não há comunidade sem participação e sem colaboração de todos, mesmo quando só alguns assumem funções de responsabilidade e liderança. Mas o que une a todos é o laço do Espírito Santo, sentados na mesa da Eucaristia, mesmo que seja à sombra das árvores.
- 5. As estradas de terra, bem esburacadas, e a escassez de meios levam-nos a valorizar o essencial. Sem uma sobriedade de vida e muita paciência, o missionário não sobrevive, mesmo que sempre tenha um prato de farinha e outro de feijão e até um pouco de galinha, no final de uma celebração de duas ou três horas.
- 6. O luar é bonito, o céu estrelado é belo, os embondeiros são imponentes, mas só o amor de Deus no coração de quem serve é capaz de dar brilho a toda e qualquer paisagem onde o que mais conta é a pessoa humana… sobretudo naquela pessoa onde a imagem de Deus foi "desconsiderada", isto é, está obscurecida pela doença, pela des-educação, pela corrupção ou pela sujeição…

"Levas a tua água?" - "Onde está a minha garrafa?" "Já enchi a tua garrafa!" Estas e outras frases semelhantes fazem parte do diálogo dos missionários quando saem de casa e vão para alguma das 72 comunidades com que é constituída a paróquia/missão de Itoculo. A água por lá não se pode beber sem correr riscos… Mas aquela garrafa que me foi acompanhando e que várias vezes esvaziei bebendo para depois, de novo encher, em casa, antes da nova partida, ficou para mim como um símbolo da vida missionária e daquilo que eu quero aprender a ser em cada dia: garrafa vazia de mim mesmo que se deixa encher do Espírito de Deus para, saindo de mim mesmo e indo ao encontro dos outros, sobretudo dos mais pobres, me derramar totalmente, sendo para eles gota de esperança que os encaminha para a fonte de vida, Jesus Cristo nosso Salvador.

A minha garrafa, de litro e meio, tinha-a comprado no aeroporto de Lisboa e, antes de regressar, tive o cuidado de a deixar lá, ainda em condições de ser usada por outros… Há sempre algo de nós que fica, quando nos damos, mas é quase sempre muito mais aquilo que recebemos e que enche a nossa vida!

P. José Manuel Sabença - Visita a Itoculo de 23 a 29 de Novembro.

27 de novembro de 2010

miyo korowa (eu já vou)

Elson Lopes
Itoculo



E com isto já lá vai um ano de estágio, aqui neste Itoculo moçambicano. Parece que ainda foi ontem... Mas a vida é assim mesmo: chegar e partir.
Cheguei para fazer uma experiência missionária, para aprofundar a minha vocação missionária, procurando conhecer melhor em que consiste ser missionário.
Cheguei para estar com este povo macua, com as suas alegrias e tristezas, sucessos e dificuldades… e juntos partilhamos tudo isto.
Cheguei para dar-me e doar-me… e no entanto muito recebi.
Assim parto com o coração partido!
Parto com uma fé mais madura e um espírito mais enriquecido.
Parto com alegria por poder experimentar, viver e saborear a alegria da vida missionária.
Parto agradecendo a Deus por esta oportunidade e por este povo maravilhoso e acolhedor.
Parto também picado pelos mosquitos, sabendo, por experiência própria, o que é malária.
Parto deixando uma parte de mim e levando um parto dos outros ...
Parto na esperança de um dia voltar, pois como diz um escritor cabo-verdiano “si ka bado ka ta birado”.
Aproveito para agradecer o acolhimento e a alegria contagiante de toda a equipa missionário de Itoculo e de modo particular os padres Raul e Damasceno, com quem vive durante este ano.
Miyo korowa masi murim’aka enahala momu. Koxukuro atthu othene ! (parto mas deixo cá o meu coração. Obrigado a todos!)

10 de novembro de 2010

preservativos: bolas para todos


Elson Lopes
Itoculo


Há uma semana terminou o ano lectivo para algumas classes. Para as que têm exame ainda não. Mas todos já podem gritar: “ESTAMOS DE FÉRIAS!”. Para alguns as férias são merecidas, para outros nem por isso. Como se costuma dizer: tudo neste mundo tem o seu lado positivo e o seu lado negativo. Portanto, também as férias estão incluídas nesta regra, concretamente as férias aqui em Itoculo, apesar de haver excepções à regra.
O lado positivo é poder descansar, brincar, ir assistir a vídeos sem nenhuma preocupação, e não ter que aturar os professores, sobretudo o professor Elson, que não deixa copiar mesmo sabendo o lema, “sem cábula não se chega a Maputo” (quem não copia não vai longe) e dá muitos TPC… etc.

O lado negativo é que, começando as férias, começam os “casamentos”. Mal começaram as férias, duas das minhas alunas já se casaram, melhor, já foram viver com um rapaz. E durante o ano quatro engravidaram, todas menores de idade (têm idade compreendida entre 13 e 17 anos). Pior de tudo é que os pais e o governo contribuem para isso. Os pais contribuem porque, mal as meninas fazem a iniciação (que ocorre normalmente depois da primeira menstruação), alguns começam a buscar homens para elas e outros incentivam-nas a isso. E o Governo para combater a gravidez precoce e as doenças sexualmente transmissíveis faz campanhas de distribuição de pílulas, injectáveis e preservativos. Só que, em vez de diminuir, está a aumentar o número de adolescentes grávidas e pessoas seropositivas. Este tipo de campanhas, de facto, constitui um incentivo acrescido à prática sexual. Numa campanha de vacinação que fizeram ao meio do ano, uma aluna recebeu as pílulas e preservativo e disse: “agora já posso fazer sexo à vontade que já tenho protecção”.

Do dia 1 a 6 deste mês (Novembro) também houve mais uma campanha de vacinação, onde chegou um camião de preservativos, que distribuíram a todos aqueles que apareceram para vacinar ou que passaram por perto, enquanto o Centro de Saúde estava sem medicamentos básicos e sem meios para transferir os doentes para o hospital central do distrito. Ou seja, para essas campanhas nunca falta dinheiro e gasóleo, mas para os medicamentos e transporte de doentes não existe. O mais engraçado é que o P. Damasceno contou que, numa comunidade onde foi celebrar num Domingo, as pessoas iam confessar-se e tinham preservativos no bolso da camisa com a ponta de fora. Sem mais comentários…
Como disse acima, tudo tem o seu lado positivo e negativo. E o lado positivo desta distribuição é que a rapaziada já tem bolas à vontade para jogar. Pegam nos preservativos enchem, com a boca, enrolam plásticos e fios de forma a ficar redondo como uma “bola profissional”. É grátis. Entre outras finalidades esta é a que parece ter mais sucesso.
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27 de outubro de 2010

“a música não se privatiza…”


Damasceno
Itoculo


Todos os domingos, depois de termos celebrado e almoçado nas comunidades, à tardinha, juntamente com a comunidade das irmãs, temos na missão uma hora de adoração ao Santíssimo. Mais do que um preceito, esta hora representa para nós um momento de verdadeiro repouso, revitalizante, no fim de um longo dia de trabalho fora de casa.

Em Itoculo, com a chegada da energia eléctrica (em 2007), começaram a proliferar, um pouco por todas as esquinas, palhotas tipo clube de vídeo e discoteca. A partir de uma certa hora, a malta jovem, e não só, vai toda assistir a algum filme de kung-fu chinês ou de Rambo americano. Filmes com argumentos daqueles em que os diálogos só atrapalham. O máximo que se produz são monossílabos, ou grunhidos, sem necessidade de legendas. Em cada uma destas barracas se tenta vender o peixe o melhor que se pode. A técnica para atrair a clientela é a mesma de sempre. Tentar dar nas vistas, ou melhor, nos ouvidos, falar mais alto que o concorrente. Por isso cada “videoclube” está munido do seu altifalante de alta potência decibélica para se fazer notar, infernizando toda a povoação e arredores. Pelo som não se paga nada, só pela imagem – um metical cada sessão (equivalente a 2 cêntimos de Euro). Num dos seus brilhantes romances, Mia Couto coloca esta sábia sentença na boca de um dos personagens: “a música em África não é para ser privatizada”! hum, hum…

E agora metamos os dois parágrafos anteriores no mesmo saco. É que uma dessas salas de “cinema” encontra-se exactamente em frente da capela onde fazemos a nossa adoração! É uma situação no mínimo insuportável. Ao longo de várias semanas foram-me vindo à cabeça algumas estratégias para pôr cobro a isto. Algumas delas partilhei com o resto da equipa missionária. Outras não.

PLANO A: montar uma aparelhagem e um projector de vídeo no centro paroquial e passar filmes de borla para arrasar de vez com o adversário.

PLANO B: Comprar o espaço à frente da capela e fazer assim com que o espectáculo vá, pelo menos, um pouco mais para longe.

PLANO C: Ir ter com o homem do altifalante e lançar-lhe uma praga de racha pessegueiro (ou cajueiro, para ser mais inculturado). Talvez pudesse combinar com os homens da EDM (Eletricidade de Moçambique) para provocarem um black out um pouco depois do meu oráculo ameaçador.

PLANO D: Escavar um túnel de nossa casa até ao terreno do inimigo e depositar por lá uns explosivos…

Alguns destes planos têm inconvenientes, reconheço. E o pior é que foram detalhadamente engendrados, ponderados, reelaborados... precisamente durante o tempo de adoração ao Santíssimo Sacramento. É um pouco decepcionante, e humilhante até, deparar-se com esta colecção de ideias ao cabo de uma devota hora de meditação. Mesmo assim, graças a Deus. Este conjunto de PLANOS, de A a Z, é o símbolo da minha fragilidade. Símbolo da incapacidade de me abster do ruído exterior para mergulhar no amor silencioso de Deus. Símbolo da minha incapacidade de perdoar, de relativizar, de serenar, não dando azo à irritação. – E é esta a minha oração, Senhor. Por uma fracção de segundos, esta simples constatação se transformou em oração, me ocupou por inteiro a alma, sem que o rapper ou o pop beat do vizinho me perturbassem mais. Por este momento apenas, esta hora de adoração já valeu a pena.

Graças e louvores se dêem em todo o momento.

4 de outubro de 2010

construção-comunhão-chave-missão

Raul Viana


Itoculo

A mensagem para o Dia Mundial das Missões de 2010 do Papa Bento XVI convida cada cristão a renovar o seu compromisso de anunciar o Evangelho, um dever de toda a igreja “missionária por natureza”. Portanto, trata-se de “promover o anúncio do Evangelho no coração de todas as pessoas, povos, culturas, raças e nacionalidades, em todas as latitudes”. Protagonista do compromisso da Igreja missionária, cada um é convidado a “estender o olhar do coração sobre os imensos espaços da missão” e a dar a sua colaboração através da oração e da partilha fraternal.

A partir do tema da Mensagem - «A construção da comunhão eclesial é a chave da missão» - deixo aqui uma pequena partilha da vida missionária em Itoculo/Moçambique:

CONSTRUÇÃO:
Construir, destruir, reconstruir… são acções e comportamentos que todos vivemos no nosso dia-a-dia. Quando realizados em comunidade, em vista do bem comum, exigem um esforço maior. A nossa presença no meio deste povo – paróquia de S. José de Itoculo – visa esta construção eclesial. Mais do que a «pastoral do tijolo», é importante a pastoral evangelizadora junto de cada pessoa. Seguindo esta ordem de factores, chegou também o momento construir um espaço físico para que os nossos encontros pastorais tenham um mínimo de condições.
(Desde já agradecemos a todos aqueles que generosamente nos ajudam nesta tarefa).

COMUNHÃO:
Quando impera o individualismo a tarefa da comunhão é uma necessidade que exige redobrados esforços. Mais do que juntar pessoas, a nossa missão é criar laços de união, que com o dom da fé se transformam em comunhão. A dispersão das pequenas comunidades por toda a paróquia é grande, para isso investimos na formação e informação dos nossos diferentes animadores pastorais através dos encontros semanais para despertar à unidade paroquial e eclesial, consolidando a opção alcançada pelo baptismo.

ECLESIAL (Igreja):
A Igreja é a assembleia dos convocados, daqueles que foram chamados para viver e celebrar a sua fé cristã em comunidade. Uma convocação que se torna mais evidente cada domingo na Celebração Comunitária da Palavra, ou na Celebração Eucarística quando há Sacerdote para tal. Como não é possível entrar todos os domingos nas 77 comunidades da Paróquia, cada padre centra-se numa delas e com ela celebra o mistério da fé. Isto significa que são precisos mais padres missionários!
CHAVE:
Desde muito cedo aprendemos a lidar com as chaves de casa para abrir e fechar portas. Sabemos da importância de as guardar bem seguras e do cuidado de não as perder. Se elas são importante para fechar, são ainda mais importantes para abrir. Deste modo, podemos ir ao encontro daquilo que temos guardado e também descobrir outros tesouros e abrir novos horizontes na nossa vida. Numa cultura muito diferente daquela onde nascemos e crescemos é importante cultivar esta atitude de abertura e acolhimento.

MISSÃO:
Já todos sabemos que a Missão é ‘atemporal’ e não há território específico para se ser missionário/a. Ela é de todos e em todo o tempo e lugar. Isto mesmo partilhamos aqui com os nossos cristãos, também eles chamados a serem missionários pela oração e partilha. A sensibilização vocacional e missionária a par do ofertório para as missões (por mais pequeno que seja) são dois pontos comuns neste Mês Missionário.

Concluindo, importa recordar que «o Pai nos chama a ser filhos amados em seu Filho, o Amado, e a reconhecermo-nos todos irmãos Nele, Dom de Salvação para a humanidade, dividida pela discórdia e pelo pecado, e Revelador do verdadeiro rosto de Deus que ‘amou tanto o mundo que Deus o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna’ (Jo 3,16)».

14 de setembro de 2010

vai de roda em roda



Elson Lopes

Itoculo


Aqui em Itoculo somos uma comunidade espiritana composta por três membros. É uma comunidade de comunhão, de confiança e de alegria. É uma comunidade jovem que vive na “moda”: somos todos ‘magrinhos’, não por falta de comida, mas porque queremos manter a “linha”! Como diz o Dom Germano, bispo da diocese, «os dois padres de Itoculo são magros como Jesus». Pois queremos também seguir o exemplo de Cristo em tudo.

Nesta comunidade partilha-se “tudo”: sofrimento e alegria. E, para melhor vivermos a partilha no que toca ao sofrimento, temos uma “mosquita” (pois são as fêmeas que transmitem malária) que passa de quarto em quarto a levar a malária a todos. Normalmente isto acontece à vez, depois de um tempo mais intenso de trabalho.


Assim, num belo dia, a nossa “amiga” começou o seu serviço de colaboração (ou descolaboração) com a comunidade, seguindo o nosso esquema da animação da liturgia que é rotativa seguindo a ordem dos quartos. Começando no primeiro quarto, onde está o Pe. Raul, ela lá deixou a malária. De seguida, demorando uma semana por causa da distância a percorrer, passou para o quarto da outra ponta, onde está o Elson, aí também deixou a malária. Três dias depois, passou para o quarto vizinho, onde está o Pe. Damasceno, como sempre, deixou a malária. Isso aconteceu por duas vezes consecutivas. Da terceira vez, antes de picar e seguir para o outro, repetiu a dose na mesma pessoa. E, como partilhamos “tudo” e por igual, também todos tivemos duas malárias nesse mesmo mês. Mas, damos graças a Deus porque tem sido sempre um de cada vez e não em simultâneo, pois é preciso cuidar uns dos outros. Nisto tudo, o mais curioso e engraçado é que se torna muito fácil saber quando um de nós tem malária. O primeiro sintoma é que ela interfere naquilo que cada um mais aprecia: quando o Pe. Raul não toma o seu “sagrado” café está com malária, pois ele só não o toma quando tem malária, de resto nada o impede, a não ser a electricidade que às vezes desaparece no momento em que vai ligar a máquina; quando o Elson não come o seu saboroso prato de arroz é porque tem malária, pois só deixa arroz de lado quando tem “cachupa”; e quando o Pe. Damasceno não come o seu delicioso pão é porque a malária o está a visitar. Quando assim acontece, tratamo-la com muito respeito, repousando, pois como diz o Pe. Raul: “ela, a malária, é uma «senhora» que merece muito respeito e atenção”.

Com tudo isto a missão continua e a malária vai sendo cada vez mais familiar!!!

25 de agosto de 2010

roubaram-nos as galinhas

Raul Viana

Itoculo

Não eram muitas, mas uma a uma lá foram desaparecendo, até que nos antecipamos às duas últimas que as comemos. Tudo estava preparado e era o começo de uma produção caseira para consumo próprio. Mas o amigo do alheio saltou a cerca e estragou o a produção. Assim, tivemos que reforçar a vigilância e intensificar a vedação, pois como diz o ditado, «casa assaltada, trancas à porta».

Não interessa falar aqui do roubo de umas quantas galinhas, porque para falar deste assunto com rigor e realidade exigia que se começasse por outros lados com outras quantias e regalias. Só por curiosidade, já temos um novo Administrador do nosso Distrito de Monapo, Salvador Talapa.

Enfim, qualquer pessoa que chega nestas terras ao deparar-se com uma casa normal, diferente das palhotas ou barracas de lata, de imediato se fixa nas grades das casas, portas e janelas, nos guardas diurnos e nocturnos que se revezam. Tudo isto se acentua quando se trata de um ambiente citadino.

Muitas histórias se contam e muitos factos comprovam este proceder que visa apoderar-se dos bens alheios. Quem aparenta possuir um pouco mais acima do normal, logo é apontado como potencial alvo a atingir. Antigamente eram os colonos, que até deram origem ao ditado: «ao branco não se rouba, apenas se diminui o que tem». Agora qualquer estrangeiro é assim considerado, como justificativo da sua presença.

O problema do roubo ou a segurança dos bens é uma questão da ordem do dia. Toda a gente sabe que o pobre não tem nada para roubar. E ladrão digno de tal profissão não entra em casa de iguais, nem vai em casa desprovida. Às vezes esta regra também muda.

Na verdade, toda esta realidade parece ser bem característica de qualquer país em vias de desenvolvimento. Por um lado, manifesta que as pessoas ainda andam à procura dos bens de primeira necessidade e essa é a sua satisfação a realizar. Por outro lado, para aqueles que já têm acesso à televisão, um mundo de coisas novas e aliciantes são publicitadas para as quais não têm meios de conseguir senão por vias travessas, a pilhagem.

Aqui neste Itoculo pacífico e sereno, longe da confusão e do anonimato, nunca tivemos problema de maior, a não ser estas galinhas… Mas sem ignorar nem desprezar a realidade que nos envolve, também temos os nossos guardas e as nossas grades. Como tudo isto é tão próximo e comum, também com todos eles já estamos familiarizados.

E assim a Missão continua…

14 de julho de 2010

feitiço e feiticeiros



Elson Lopes
Itoculo


Uma das coisas que afecta o povo moçambicano, concretamente aqui em Itoculo, norte de Moçambique, é a crença nos feiticeiros. Uma pessoa faz uma grande “machamba” consegue produzir bem e ter comida para todo o ano. Quando chegar o tempo da seca aquelas pessoas que não trabalharam ou que fizeram um pequena “machamba” e venderam tudo, começam a passar fome, aparecem doenças, sofrimentos, etc. Para justificarem esses males recorrem aos curandeiros para ir ver na comunidade quem é o feiticeiro que está a causar esses males. Combinam com o curandeiro o que devem tirar a esses feiticeiros: bicicleta, cabras, galinhas, milhos etc. Como é óbvio, a quem não tem nada, não podem tirar nada. Então são acusados aqueles que durante o tempo fértil ralaram dias e noites para conseguirem ter alimento suficiente para todo o ano.


Por causa disso, quando falamos que devem fazer mais “machamba” muitos começam a torcer o nariz pois não querem mais tarde serem acusados de feiticeiros. Isto é uma das causas do subdesenvolvimento deste povo.

Temos sensibilizado os cristãos para combatemos esse mal, mas é uma tarefa difícil, pois já lhes está “no sangue”. Qualquer doença demorosa, acontecimentos naturais e comuns, logo é considerado «tradição» (feitiço). Lembro-me um dia em que íamos para um encontro numa das regiões da nossa paróquia, no caminho encontramos um dos nossos animadores que tinha apanhado uma malária muito forte. Parámos para o cumprimentar e perguntar-lhe se já estava bom. O Pe. Damasceno pergunta-lhe: «então a malária já passou?» E ele com toda seriedade e naturalidade responde: «já senhor Padre. Não era malária, era tradição».

Apesar de formações e explicações de que Deus é o Todo-poderoso e que está acima de tudo, inclusive dos feiticeiros, isso não entra na cabeça deles. A cultura, com as suas coisas menos boas, está muito entranhada e é muito difícil de modificar.Acreditamos e rezamos para que, com a força do Espírito Santo, um dia mudem esses pensamentos e crenças e possam acreditar totalmente em Deus.

8 de julho de 2010

Intervenção no fim do Primeiro Capítulo
do Grupo Espiritano de Moçambique



John Kingston
Correspondente do CG para Moçambique

Na oração do Primeiro Capitulo de Mocambique dizemos: “Deus nosso Pai, nós vos pedimos o dom do Espírito Santo. Que Ele nos encha com o fogo do seu amor, e inspire o nosso trabalho, pensamentos, palavras e decisões”.

Penso que neste momento de graça que é o capítulo, a nossa oração foi ouvida e atendida. O Espírito Santo trabalhou em vós e chamou-vos para ultrapassar certas dificuldades de comunicação e vos levou a uma união maior.

A vossa convicção, expressa na mesma oração, é muito significativa: “Estamos determinados a acolher o que for da vossa vontade, e a seguir com coerência, generosidade e alegria o caminho do serviço aos mais pobres e do anúncio do Reino de Jesus Cristo”. É já uma promessa. Estamos a chegar a essa parte da tarefa de acolher as decisões que tomaram com a ajuda do Espírito Santo, e que se transformam na vontade do Pai para vós.

Gostaria de destacar algumas coisas. O relatório do Alberto nos lembrou o que têm sido estes 14 anos de aventura para os espiritanos em Mocambique. No relatório é evidente que, se a vida do Grupo tem sido um tanto como a procissão do ofertório, uns passos para frente e outros para trás, o movimento geral foi para a frente e houve progressos significativos. O relatório nos lembrou que, dos 17 confrades nomeados para cá, 8 saíram cedo e alguns em circunstâncias difíceis. Mas, ninguém que tenha passado por aqui, mesmo por um breve espaço de tempo, saiu sem fazer algum bem.

Apesar dos progressos, a vida do Grupo ainda está ameaçada por algumas fragilidades. Encontrar novos confrades nomeados para cá, jovens ou mais experimentados é um desafio. O financiamento da missão é um desafio para vós como para toda a Congregação.

Penso que a preparação deste capítulo e a sua realização tem sido um exercício muito bom para concentrar a visão do Grupo. Talvez terá ajudado a harmonizar os projectos das comunidades com o projecto do Grupo.

A convicção que tendes da importância da oração e da espiritualidade promete uma maior fidelidade à vocação no futuro. Será bom para a vida de cada um e para a vida do Grupo.

Vos faço um apelo: Que o capítulo seja um alicerce, ou base em que continuais a construir a missao aqui em Moçambique – Ouvi várias vezes a palavra disciplina – Na condução duma circunscrição é necessária muita paciência e disciplina em seguir os procedimentos previstos para fazer as coisas…

No próprio Capítulo, acho que houve um bom espírito de trabalho. Os vários instrumentos ajudaram: o relatório do Superior, o Instrumento de Trabalho e o esboço do plano Estratégico de Desenvolvimento. A moderação firme e flexível do Brendan ajudou a fazer avançar os trabalhos. No equilíbrio entre o trabalho, a oração, o recreio e o descanso acho que o Capítulo foi verdadeiramente uma celebração. Foi como desejava o Alberto no seu relatório: “um momento de acção de graças a Deus que nos chamou para a missão”.

Ao próprio Alberto, neste momento de passar a tarefa do ministério de Superior do Grupo para o Raul, tenho que dizer parabéns e obrigado. Digo isto da minha parte e da parte do Superior Geral e do Conselho. O bom funcionamento do Superior nos ajuda muito na animação e administração da Congregação. O que ele viveu aqui como membro fundador do Grupo durante 14 anos, e como coordenador e superior em vários momentos críticos, foi muito. O que valeu foi a sua maturidade, simplicidade, empenho nos trabalhos e paciência com as falhas dos outros. Eu penso que tudo o que o Alberto viveu ao longo destes anos daria para escrever um grande livro muito interessante da história desta fenomenal aventura com Deus, que tem sido a sua missão em Moçambique. É tempo agora de tomar uma pequena distância no tempo e no espaço, descansar deste tipo de trabalho e renovar as suas forças para a etapa a seguir. A nossa oração acompanha o Alberto na sua nova vida de estudante.

O Raul entra no ministério de Superior do Grupo. Precisa da boa colaboração de todos os membros do Grupo. Vai ter o apoio do Conselho Geral. Terá também de colaborar connosco. Para o ajudar nisto será convidado a participar num encontro de novos superiores na casa Geral durante o ano de 2011. Terá também de colaborar com as outras circunscrições da África Sul-Central na nova União.

Vamos pedir constantemente a Deus a sua ajuda para poderdes florescer como circunscrição da Congregação nesta parte do mundo.

Centro Pastoral de Nazaré, na Beira, Moçambique
22 de Junho de 2010

26 de junho de 2010

primeiro capítulo

O Primeiro Capítulo do Grupo Internacional dos Espiritanos em Moçambique aconteceu no Centro de Formação da Nazaré (Arquidiocese da Beira) de 16 a 22 de Junho de 2010. Participaram todos os Espiritanos em Moçambique: Alberto Tchindemba (Superior Principal) Damascenos dos Reis (Ecónomo do Grupo), Yves Mathieu, Ronan White, Damien Mbaouya, Chrislain Bienvenue e Raul Viana. Além destes capitulantes, estavam presentes também mais três confrades: John Kingston (Conselheiro Geral - Roma), Brendan Carr (Moderador do Capítulo e convidado da Província da Irlanda) e Yves Ngowegu (Superior Regional de África Central). Um momento celebrativo marcante para a história e a vida do Grupo e de cada um dos seus membros.
Partilhamos aqui a oração que nos animou durante estes dias:

Deus nosso Pai
Senhor do Amor e da Alegria
Nós vos louvamos e bendizemos
Neste momento tão importante
Do Primeiro Capítulo dos Espiritanos em Moçambique.
Nós vos pedimos o Dom do Espírito Santo.
Que Ele nos encha com o fogo do Seu Amor
E inspire o nosso trabalho:
Pensamentos, palavras e decisões…
Inspirados pela vida de Poullart des Places,
Nosso primeiro Fundador,
Estamos determinados a acolher
O que for da Vossa vontade,
E a seguir com coerência, generosidade e alegria
O caminho do serviço aos mais pobres
E do anúncio do Reino de Jesus Cristo.
A Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe
Nos recomendamos confiantes,
Cantando, como Ela, a Vossa imensa glória.
Ámen.

6 de junho de 2010

Trivialidades (III)
zinco e capim

Raul Viana
Itoculo




O capim é uma erva muito comum por estas bandas. Por todo o lado vemos capim verde, seco, grosso, alto, espalhado, caído… O capim nasce, cresce e desenvolve-se sem precisar de qualquer cuidado humano. Muitas vezes impede uma produção normal, especialmente quando não é capinado (=cortar capim).

No tempo das chuvas desenvolve-se mais que qualquer outra produção. Daí que se tenha de capinar constantemente se queremos ter o espaço habitável e produtivo. Quem se atrever organizar uma produção de capim será bem sucedido, apenas terá dificuldades no escoamento do produto pela enorme concorrência que ele provoca.


A sua utilidade é variada para aqueles que não têm outra oportunidade. A cobertura das casas e a vedação do pátio da casa e da horta é a sua função mais imediata. Depois pode servir ainda para chamuscar o porco, estrumar as terras, fazer ninhos para galinhas… A longa tradição africana mostra que qualquer casa tradicional (palhota) está coberta de capim.

A sua exposição constante ao sol e à chuva, ao calor e ao vento… vão-lhe reduzindo o tempo de vida útil. Ou seja, facilmente apodrece e precisa de ser substituído ou reforçado, o que deve acontecer cada ano.

Para contrapor esta tradicional rotina do povo com capim estão a surgir, para as carteiras mais recheadas, chapas de zinco prateado. Uma solução aparentemente razoável para evitar um trabalho anual de corte de capim e cobertura das casas.


Na perspectiva de um ambientalista ou um arquitecto paisagístico ocidental, poderia dizer-se que estamos perante uma aberração paisagística, desfocando o panorama rural e tradicional. E por uma questão de comodidade está a encher-se tudo com chapas de zinco. Afinal o capim é muito mais natural e conforma-se melhor com a paisagem. Não me parece estar errado este olhar de um qualquer ecologista instalado na sua casa com ar condicionado e com todos os apetrechos de comodidade que o desenvolvimento lhe proporciona!

Na verdade, quem tem de capinar e cobrir todos os anos a sua casa é que sente a necessidade da mudança. Por outro lado, também não ignoramos que esta não é a melhor solução, mas aquela que é possível e mais acessível. Basta fazer a experiencia de entrar numa dessas casas em pleno meio-dia com o sol em pino, ou abrigar-se num dia de aguaceiros para sentir o calor da chapa quente ou o ruído ensurdecedor do bater da chuva. Enfim, entre o possível e o ideal luta-se pelo acessível.

Quanto ao capim, tenho a dizer que iniciei fazer uma pequena produção mas não teve grande sucesso. Em contrapartida, tenho transportado várias cargas de chapa para as nossas comunidades e alguns particulares. Afinal ter chapa de zinco (em casa ou na comunidade) é sinal de poder económico, de progresso e mudança. E a Missão também passa por aqui, esperando que este seja um passo importante para um salto ainda maior.

24 de maio de 2010



TRIVIALIDADES (II)
batuque e panelas

Raul Viana

Itoculo


Para além das capulanas e das bicicletas presentes por todo o lado, temos também os batuques e as panelas que marcam e acompanham a vida deste povo. Dois instrumentos preciosos para qualquer celebração tradicional, religiosa ou outra.

Festa sem batuque é como comida sem sal, ou mais ainda, é como dançar sem música. Simplesmente não é festa. As nossas comunidades cristãs são convidadas a silenciar os batuques durante o tempo quaresmal. Porém, passado esse tempo não mais param de tocar. Um pouco por todo o lado e em todo o tempo se houve o ritmo do batuque que assinala uma cerimónia religiosa ou tradicional.

Com o seu ritmo próprio, cada um dos três batuques acompanha e fortalece o andamento musical e o canto festivo. E tudo isso completa-se com a dança alegre e mexida. Quem já andou por estas bandas de África sabe bem como isto funciona. Todo o corpo vibra e todos vibram com o bater do batuque.

Num destes dias tivemos uma celebração dominical com recepção de Sacramentos, portanto motivo suficiente para uma festa efusiva. Vozes entusiasmadas, palmas bem ritmadas com o corpo embalado ao ritmo do batuque eram sinais de festa. No fim da celebração dois grupos de jovens defrontaram-se a ver qual era o melhor e mais forte no canto e na dança. O entusiasmo era tão grande que nem a chuva os fizeram parar. Os batuques começaram a rebentar pelas costuras, por causa da humidade, mas logo se procuram outros para os substituir. Quando se trata de festa nada nem ninguém faz parar…

Mas só a batucada não chega. É preciso a segunda parte que requer as panelas e seu conteúdo. Assim quando há festa os jovens carregam o batuque e as mulheres levam as panelas e os acessórios. Tudo parece estar bem programado pois tudo acontece de uma forma muito natural e sem grande azáfama. Assim, depois da dança vem a comida e a festa fica completa.

Na verdade quando se marca uma festa de um grupo, comunidade ou ministério logo se tem de pensar no que se segue à celebração: a comida. Não é que seja exigente nem se perca muito tempo com a refeição, pois isso faz-se em pouco tempo, mas estar numa festa e ir para casa com o estômago vazio, não é festa.

É na simplicidade deste povo que aprendemos também a ser simples. Uma realidade que não deixa de ter as marcas de quem ainda vive em busca e preocupado com os bens primeiros e essenciais da vida. Disso são prova evidente os grupos de mulheres que carregam a trouxa à cabeça, o filho às costas e outro pela mão, a caminho de uma qualquer cerimónia.

Enfim, no meio de tudo isto procuramos não ficar fora, mesmo sem muito ritmo para a dança, mexemos um pouco e entramos na festa. Após a celebração entramos também no ritmo do batuque e terminamos com a comida cuidadosamente preparada. Assim nos vamos integrando e interagindo com este povo, pois a Missão também é assim.

14 de maio de 2010

uma bênção


Damasceno
Itoculo


A irmã Alice tinha entregue os melhores anos da sua juventude à missão em Cabo Verde e no Senegal. Depois dispôs-se a servir como superiora da sua congregação em Portugal. E, quando o mundo civilizado ditava que a sua idade era a da reforma, aceitou o desafio de abrir uma nova frente missionária para as Irmãs do Espírito Santo: a missão de Itoculo, em Moçambique, no ano 2005. Juntamente com a irmã Carmo Barros foi pioneira de uma nova página da história da sua congregação.

Agora que chegou o momento de mais uma vez pegar na bagagem e partir, agradecemos… temos que louvar o Senhor. A obra que realizou é extraordinária, revela bem como a árvore estava enraizada em Jesus, porque só assim poderia ter dado tanto fruto. Juntamente com as suas irmãs orientou e fez avançar projectos que muito irão contribuir para o desenvolvimento deste povo: o centro nutricional e o lar feminino são apenas os exemplos que mais se destacam. A missão de Itoculo ganhou um outro colorido com a presença das irmãs. Nestes anos a irmã Alice garantiu que nem na casa dos padres faltassem flores e um pouco mais de arrumação estética. Os terrenos da missão foram bem aproveitados para plantação de árvores de fruto, sobretudo papaieiras, e para o incremento do cultivo hortícola que possibilitou uma melhoria significativa da nossa dieta alimentar. A nível pastoral quem mais beneficiou foram os casais. Com persistência a irmã foi reunindo homens e mulheres para os alimentar com a palavra de Deus. Iniciou-se um novo movimento que se espera venha a crescer e a ser gérmen de uma nova maneira de ser família entre os cristãos desta paróquia: é o movimento família de Nazaré.

A irmã Alice sabe que esta missão foi uma bênção para ela. Trouxe Cristo consigo para O anunciar aos irmãos do povo macua, mas também o encontrou já presente no rosto desta cultura, um rosto surpreendentemente belo. Foi aqui que ela viveu um dos momentos mais importantes da sua vida (cada momento da nossa vida é o mais importante, claro): recordamos por exemplo que foi aqui que recebeu o sacramento da unção dos doentes juntamente com outras pessoas de idade avançada, numa bonita celebração realizada no dia do doente este ano.

Na celebração de homenagem à irmã Alice, realizada há poucos dias com a comunidade cristã, a irmã Rosenir, actual superiora, quis acentuar a dimensão de envio. Não se tratou de uma despedida, mas de um envio. A irmã Alice é uma bênção, e queremos entregar/re-enviar essa bênção missionária a quem tiver a sorte de a receber.

9 de maio de 2010

trivialidades (I)
capulanas e bicicletas


Raul Viana
Itoculo


Cada povo tem a sua cultura, e cada cultura caracteriza o seu povo. Cada povo tem a sua arte, e cada génio embeleza o seu povo. Cada povo tem os seus hábitos, mas em cada tempo a moda impõe o seu estilo… Não sei se isto é moda, mas é uma realidade bem presente no seio deste povo: as capulanas e as bicicletas.

Dizem que as capulanas são o artigo de uso mais frequente em África. De facto, raramente encontramos uma mulher sem uma ou mais capulanas. Desde criança até longa idade todas elas usam este rectângulo de pano de várias cores e feitios. A sua diversidade é grande, e para tudo e mais alguma coisa se faz uma capulana evocando um acontecimento ou sendo a marca de referência de um grupo ou comunidade.

Isto mesmo foi feito na Paróquia de S. José de Itoculo. Nós temos uma capulana própria que as mulheres usam nos dias de festa e nos primeiros domingos de cada mês. Com esse mesmo tecido se fizeram camisas para os homens a fim de ficar o casal completo e bem composto! Podemos dizer que essa é a marca referencial, a nossa bandeira. Onde quer que vamos como grupo colorimos o ambiente!

Na verdade a capulana é usada como forma de saia comprida. É usada para tapar a cabeça do sol. É usada para trazer o filho às costas. É usada como toalha ou lençol. É usada como saco ou bolsa com os produtos da machamba/campo. É usada nas capelas e cerimónias. É usada para enterrar os mortos. Enfim, é usada de mil e uma maneiras.

A par deste elemento muito comum entre os africanos, estão também as bicicletas. Tal como as capulanas, há muita diversidade e modelos de bicicletas. Mas acima de tudo, são usadas numa grande variedade de funções.

Servem para transporte pessoal. Servem para levar os doentes ao hospital. Servem para os animadores visitarem as comunidades. Servem para os alunos irem à escola. Servem para dar um passeio ou fazer um treino. Servem carregar os produtos da machamba/campo. Servem para transporte de mercadorias. Servem para inúmeras funções.

Assim, nestes caminhos irregulares (cheios buracos) com troços arenosos que dificultam a marcha, são muitas as avarias e furos que elas sofrem. Porém, o que mais interpela é a carga que elas carregam. Encontramos muitas vezes bicicletas carregando dois ou mais troncos de madeira, três ou quatro sacos de carvão, galinhas penduradas, cabritos sentados, porcos deitados, etc e tal… parecendo autênticos camiões de mercadorias. Isto sem contar as vezes que também parecem um autocarro, onde vai a família completa, ou as vezes em que são transportes de aluguer para viagens um pouco mais distantes.


Enfim, duas realidades que interpelam quem está nestas terras e que fazem parte do quotidiano deste povo. Quanto à capulana, foi-me oferecida uma delas em forma de camisa que uso no dia da festa da Paróquia e da festa das famílias. Quanto à bicicleta, o uso é muito pouco, embora já me serviu de transporte para ir celebrar numa das comunidades aqui perto. Portanto, não estando ainda totalmente inculturado no esquema local, vou tentando aproximar ao comum das pessoas e seus costumes.

14 de abril de 2010

visita pascal


Raul Viana
Itoculo

Para um cristão consciente e esclarecido viver a Semana Santa em Braga ou em Itoculo é igual. Trata-se da celebração do mesmo Mistério Pascal: Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. No essencial não diferenciamos, existem algumas modificações apenas no plano secundário. Isto é, trata-se de manifestações públicas da mesma fé onde se dão contornos próprios à sua celebração marcados pelo tempo e pelo espaço.

Sendo nortenho, aprecio o gesto bonito da Visita Pascal que decorre no Domingo de Páscoa. Não ignoro que muitas vezes tudo parece girar à volta desta visita a qual parece estar acima de qualquer outra cerimónia Pascal. Contudo, é um sinal bonito de levar a alegria de Cristo Ressuscitado de casa em casa, onde se junta a família e os amigos para acolher essa feliz notícia. Isso recordo com saudade.

Porém, aqui em Itoculo não temos essas tradicionais procissões, essas majestosas cerimónias, esses calorosos Compassos Pascais, esses potentes foguetes de festa ou essas alegres campainhas anunciadoras da proximidade de tal visita. Sinais expressivos de um povo e uma cultura, concretamente, desse norte português. O que temos cá, o qual também não trocamos com ninguém, é a vivência simples e profunda de todo este Mistério Pascal. Nestes dias as capelas são pequenas para tanta gente. O tempo decorre em função da vivência, contemplação e celebração do Mistério Pascal. Simpatizantes, amigos, catecúmenos, cristãos, gente de todas as idades, de longe e de perto, celebram profundamente este acontecimento pascal.

Como na Alta Idade Média da Europa, também aqui se foca bastante a dimensão sofredora da Paixão de Cristo. Talvez por uma questão de vivência limitada e sofredora deste povo que encontra na entrega de Cristo um ponto de encontro com a sua situação existencial. Por isso, não é de estranhar a enchente de pessoas que celebram a Via-sacra, ou a demora diante da Cruz de Cristo em dia de Sexta-feira Santa.


Bonito e enriquecedor é a Vigília Pascal de Sábado Santo. Logo de manhã o Ministro da Comunhão, acompanhado por um cristão, percorre cinco, vinte ou trinta e cinco quilómetros para levar o Santíssimo Sacramento para a Celebração da Noite Pascal. Iniciam a celebração ao início da noite e não mais olham para o relógio. À luz da fogueira, símbolo de Cristo Luz do mundo, proclamam todas as leituras bíblicas e sobre elas reflectem o acontecimento dessa Noite Santa. Na falta de Padre, renovam as promessas do baptismo e terminam comungando o Corpo do Senhor Jesus glorioso. Quando há Padre a presidir, a celebração prolonga-se com o rito dos Sacramentos de Iniciação Cristã.

A noite parece pequena e logo desponta a manhã da Ressurreição, o Domingo de Páscoa que fica marcado por uma simples convivência cristã. Faz-se uma visita aos doentes e idosos da comunidade cristã e vai-se interiorizando o mistério da Ressurreição com a alegria e a festa onde não falta o jubiloso ALELUIA.


Continuação de uma Feliz Páscoa para todos

9 de abril de 2010

que bom estar aqui

Elson Lopes
Itoculo

Já lá vão quase 5 meses que cheguei a Moçambique e quase que não dou conta, pois já me sinto macua. Estou mais rico (não de dinheiro) e mais gordo (1kg) apesar de uma malária que foi leve (dois dias de cama).
Agora compreendo o que sempre ouvi dizer aos missionários, estagiários e leigos que estiverem em terras de missão: nada levei e tudo trouxe. Digo o mesmo: nada trouxe e já recebi muitas coisas. Por isso digo que estou mais rico do que quando vim. Muito aprendi e estou aprendendo cada dia que passa com este querido povo moçambicano, concretamente povo de Itoculo. Já tive lições de vida a nível espiritual e material.

Quando vejo este povo que vive com o mínimo para a sobrevivência, às vezes nem isso, a partilhar, a comer do que tem e quando tem, a aproveitar o máximo do que tem sem deixar estragar e a agradecer mais do que reclamar. Comecei a rever a minha vida, pois eu, graças a Deus, tive o privilégio, se assim posso dizer, de ter muita coisa e até de fazer escolhas. E mesmo assim reclamava mais do que agradecia. Este povo fez-me aprender a reclamar menos e a agradecer mais.


Quando vejo este povo a percorrer quilómetros a pé, por vezes ao sol, às vezes com chuva e fome, para se confessarem e participarem na eucaristia, vejo a minha pouca fé, porque nunca tive que percorrer mais de 2km a pé nem de carro para me confessar e participar numa celebração e às vezes ia só para cumprir o meu dever cristão e de seminarista.

Nos tempos litúrgicos fortes (natal e páscoa) há sempre confissões em todas a zonas da paróquia e enquanto o padre confessa aproveito para fazer encontros com os jovens. Uma vez, um jovem fez uma afirmação e depois fez-me uma pergunta que me fez e faz pensar: na bíblia Jesus diz que quem acreditar Nele há-de fazer milagres. Porque que é que nós que dizemos acreditar em Jesus não fazemos milagres?
Isso faz-nos pensar se realmente acreditamos em Jesus. Acho que sim mas é preciso acreditar de todo o coração. Isso é complicado mas é possível.

Uma coisa interessante também é a simplicidade deste povo e sobretudo das crianças que são uns amores. Logo que ouvem o carro a passar saem todos a correr gritando “ta-ta-vo” e dão um sorriso lindo e puro.

É tudo isto que me enriquece, e dá-me forças para procurar amar mais, dar-me aos outros e dizer “NOXUKURO, PWIYA MULUKU”.

9 de março de 2010

comversão


Raul Viana
Itoculo

As mudanças trazem sempre muita novidade. São mutações físicas e interiores que trazem sempre consigo uma vida nova, mesmo que às vezes seja doloroso esse acontecer. Desde que cheguei aqui a Moçambique estou vivendo várias «conversões», e muitas outras ainda estão para acontecer. Assim, de maneira simples e elementar, deixo aqui a versão de algumas delas:

-Conversão geográfica: passar a linha do equador para o hemisfério sul é passar do Norte desenvolvido para o Sul em vias de desenvolvimento. De facto, quem vem desse «cantinho à beira mar plantado» ao chegar aqui encontra um país economicamente pobre e dependente das ajudas externas. Mesmo assim com os seus limites governativos, algo vai acontecendo, ainda que seja a um ritmo lento.

-Conversão climática: do ritmo quaternário das estações anuais bem definidas, ainda que tudo pareça um pouco alterado, passei a um ritmo binário de tempo seco e chuvoso. Mas o predomínio é a seca e a consequente falta de água que este povo vive. Porém, quando chove, o calor e a humidade fazem toda a diferença com o frio do norte, por vezes marcado com a neve.

-Conversão monetária: o poder da moeda europeia (Euro) nada tem a ver com o frágil Metical sempre a desvalorizar. O salário mínimo ronda os 44€ para aqueles que o conseguem ter. A grande maioria das pessoas vive abaixo de um euro (1€) por dia. Assim, a proximidade e identificação com este povo exige muita conversão/renúncia da nossa parte.

-Conversão linguística: embora o português seja a língua oficial de Moçambique, poucos são aqueles a usam dia-a-dia. A língua macua é a que predomina e quem a desconhece tem «muita fraqueza» na vida de relação e comunicação, reduzindo-se a duas ou três frases iniciais. Enfim, sobre isto haveria muito que falar…

-Conversão gastronómica: um cozido à portuguesa, um bom bacalhau, uma sarrabulhada… deu lugar à Xima (farinha de milho cozida) com o seu caril (conduto). Ao fim de algum tempo fica a sensação e até somos capazes de dizer: «nunca comi tanta farinha!». Talvez seja a reduzida variedade de a preparar, pois a diversidade culinária assenta na grandeza do caril que a condimenta.

-Conversão cultural: de um estilo de vida mais cronometrado passei a uma vida mais temporalizada. Mesmo com relógio no pulso, quem manda é o tempo dado a cada pessoa e cada situação. Vindo de uma cultura marcada pela inter-comunicação e globalização entramos numa cultura bastante fechada nos seus ritos e costumes tradicionais que exige conhecimento, cuidado e compreensão.

-Conversão pastoral: aqui deu-se a passagem de uma igreja com «muitos cabelos brancos» para uma jovem igreja cheia de gente nova. Dentro deste campo deu-se ainda outra mudança: da pastoral vocacional e juvenil para uma pastoral paroquial com tudo o que isso implica. A experiência adquirida simplifica o trabalho, mas as novas áreas que se abriram exigem redobrado esforço.

-Conversão pessoal: esta é a principal e a maior de todas, sobre a qual prefiro não vou falar agora, pois ainda estamos a meio da Quaresma…

6 de fevereiro de 2010

o nosso velho Estêvão


Raul Viana
Itoculo



Num destes domingos do início do ano em curso fui celebrar na comunidade de Quatro Caminhos, Mãe de Deus. Uma comunidade antiga com uma história rica de compromisso cristão. A própria capela, qualitativamente melhor em relação às demais, é um sinal claro desse passado sofredor e resistente.

Era uma dessas visitas surpresa que por vezes fazemos com o fim de encontrarmos a comunidade cristã no seu estado normal e habitual. Pois, quando há marcação prévia de celebração eucarística, tudo fica mais bonito e participativo, pelo menos, para o Padre ver. Por vezes corresponde à verdade, outras vezes não. Embora não seja do agrado dos visitados, para nós serve de termómetro para medir o nível real da comunidade.

Nesse dia saímos bem cedo para evitar chegarmos a meio da celebração dominical que cada Animador, também conhecido por Ancião, tem a missão de orientar. Das setenta e sete comunidades cristãs presentes na Paróquia, sendo apenas dois padres, fica impossível chegar a todas elas no quadro de um período normal de tempo. Algumas delas apenas conseguem ter uma visita anual. Por isso mesmo, são os leigos, devidamente escolhidos e preparados, que orientam este serviço celebrativo da comunidade.

Então, quando chegamos à comunidade Mãe de Deus, fomos dos primeiros. Havia pouca gente para a celebração que habitualmente parece iniciar mais tarde em relação à nossa hora de chegada. Não rejeito a ideia de que com o sentir do carro outros se apressaram em aparecer. Porém, quando começamos a celebração já havia um bom grupo de cristãos.

Como geralmente acontece, iniciamos a celebração com a saudação habitual sobre as novidades de quem acolhe e de quem visita. Após a oração da manhã, à sombra de uma acácia, houve um tempo para celebração da reconciliação e posterior celebração eucarística. No fim da manhã ainda houve tempo para um breve encontro com os jovens e com os «papás» (homens) do conselho da comunidade. Por um lado, ouvimos as suas alegrias e inquietações, e por outro, aproveitamos para dar alguma orientação para a vida da comunidade.

Foi durante esta partilha que nos falaram com muito carinho do «nosso velho Estêvão». Um papá com alguma idade (fará 80 anos em Outubro) que no tempo do regime marxista-leninista moçambicano soube defender sabiamente esta comunidade cristã e seus bens. Foram tempos difíceis, com declarada perseguição religiosa, mas onde a fé foi mais forte, e prevaleceu.

Quando ouvi um pouco desta história fiquei interessado e com a obrigação de visitar e conhecer este «nosso velho Estêvão». Assim, depois do almoço com a tradicional Chima (farinha de milho cozida) acompanhada do seu caril (desta vez era sardinha enlatada), seguimos a nossa visita domiciliária. Passamos numa família onde atendemos uma mamã que tinha os pés inchados. Por sorte estava com Irmã Augusta que é Enfermeira no hospital de Itoculo. De imediato diagnosticou o problema, mas como não tinha medicamento, combinou com o marido da mamã para nos acompanhar até casa a fim de conseguir medicamento.

A meio da tarde chegamos à casa do «nosso velho Estêvão». Era também uma visita surpresa e inesperada. Através da esposa ele soube que na comunidade houve missa dominical. Mas as suas pernas que não lhe permitem fazer grandes percursos, por isso ficou sentado em casa. Aí mesmo o encontramos. Após a saudação inicial não foi difícil ver e sentir o seu rosto radiante de alegria. Sentamos e falamos um pouco recordando esse passado ainda recente e vivo na sua memória e na de outros que aí presentes completavam os factos. E assim, após algum tempo de conversa, regressamos a casa.

Enfim, a vida missionária por estas terras vai-se compondo com este tipo actividades e encontros simples e familiares. Ou seja, não têm nada de especial, a não ser o testemunho daqueles que com pouco, fizeram muito. Casos como este, e até mais comprometidos, repetem-se um pouco por todo o lado na vida missionária. Mas é com eles que aprendemos e crescemos no testemunho e vivência da nossa fé cristã. Recordando-os, permanece o desejo de que nunca nos faltem esses cristãos corajosos e comprometidos capazes de marcar a vida e a história de cada família e comunidade.

25 de janeiro de 2010

A “morabeza” moçambicana

Elson Lopes
Itoculo


Chegando a Matupo, estive 4h sentado, sem poder fazer nada (mesmo as necessidades fisiológicas da nossa natureza humana) por causa de não roubarem a mala.
Quando passava para a sala de espera apresentei a minha mala de mão para revistarem. Entretanto, o senhor que estava a revistar encontrou um frasco de perfume e começou e resmungar que não podia passar com aquilo. Expliquei-lhe que era pouca quantidade e que deixaram passar em Portugal. Ele respondeu: “aqui não é Portugal, é Moçambique”. Depois de tudo disse-me que podia passar mas tinha que dar um “refresco”. Como não sabia o verdadeiro significado de “refresco” aqui, perguntei-lhe se queria cerveja, ele disse não. Disse: então vou comprar sumo, assim fiz. Quando cheguei contei o sucedido ao senhor padre Damasceno e ele riu-se. Não compreendia o porque do riso. Depois diz-me: o “refresco” que o senhor pediu não era sumo mas sim dinheiro.


No avião para Nampula vinha ao meu lado uma criança desembaraçada e esperta, falava bem o português. Durante o voo ela pôs-se a falar comigo fazendo perguntas. Quando nos serviram o lanche (eu já estava com fome) mas ela não quis comer o seu lanche. Então perguntei porque não comia, ela respondeu dizendo que guardava para oferecer ao pai que estava a sua espera em Nampula. Perguntei-lhe se não queria ficar grande como a mãe (que estava do outro lado) ela diz-me que sim e eu disse: então tens que comer. Ela concordou comigo mas comia só uma parte e a outra guardava para o pai.
Conto-vos estas histórias para verem que devemos ser como crianças, como diz o evangelho. Apesar do sucedido na primeira história, aqui quem tem, partilha com o outro, como que é obrigado. Isso é muito bom apesar de favorecer a preguiça.
Uma das coisas que me impressionou também é a “morabeza” (bem acolher) que se vive aqui.

Nas celebrações dominicais almoçamos sempre nas comunidades onde celebramos. Servem-nos sempre o melhor que têm e que podem. Mal a equipa missionária chega, ficam preocupados com o que vão servir e alegres pela nossa presença, sobretudo do padre porque assim vão poder confessar e comungar (maioria das vezes não sabem que vamos porque é surpresa para vermos como anda o funcionamento das comunidades visto que passam meses e meses sem ninguém da equipa passar lá).
Aqui, e não só, há sempre a preocupação de dar algo de comer ao visitante. Quando o visitante rejeita ficam tristes pensando que o visitante está a armar-se melhor do que eles, não querendo ser como eles, comendo do que eles têm e comem. Deve-se ter um espírito humilde. Sinto-me alegre por estar no meio deste povo.

26 - A alegria completa

– Netia-Itoculo/2003-2004 «Um homem não pode tomar nada como próprio, se isso não lhe for dado do Céu. […] Pois esta é a minha alegria! ...